domingo, 8 de abril de 2007

Justiça reconhece validade de casamento espírita

Como a notícia é antiga (13.3.2006), aproveitando o ensejo da postagem anterior, segue a reprodução da matéria obtida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u119343.shtml, já com os meus comentários.
A primeira coisa a dizer é que o Espiritismo não possui dogmas nem rituais, justamente o que leva muitas pessoas a dizer que ele não constitui uma religião — argumento incompreensível, já que religião é um "culto prestado a uma divindade; crença na existência de um ente supremo como causa, fim ou lei universal". Esta é a definição primeira dada pelo Dicionário Houaiss, em plena consonância a qualquer teologia isenta. Somente depois aquele dicionário fornece outras acepções — e quem está familiarizado a dicionários sabe que as diversas acepções são independentes entre si: "conjunto de dogmas e práticas próprias de uma confissão religiosa", "a manifestação desse tipo de crença por meio de doutrinas e rituais próprios", "crença, devoção, piedade" e "reverência às coisas sagradas".
Dizer que o Espiritismo não constitui religião por não conter dogmas nem ritos é um reducionismo tosco e irrefletido, de quem jamais tentou entender o conceito de religião ou, por má fé, quer deturpá-lo em proveito de alguma convicção pessoal inconfessável.
O fato é: nunca antes eu ouvira falar em casamento espírita, como fato consumado, justamente porque não adotamos tais práticas. Para os espíritas, como o casamento é uma instituição civil, rege-se pela legislação civil. Espero que o casal da reportagem tenha agido de forma refletida e não mistificada. Afinal, o fato se deu na Bahia, onde há uma forte tendência ao sincretismo religioso e a fusões que, com todo o respeito, descaracterizam as religiões envolvidas. Não sei se foi o caso.

Depois de oito meses de batalhas judiciais, o comerciante Itamar Luís Soares de Olinda Cardoso, 38, e a funcionária pública Cristina Teixeira Leal, 30, conseguiram reconhecer o casamento realizado no Centro Espírita Cavaleiro da Luz, em Salvador (BA).
Três dias após a união, que aconteceu em 2 de julho do ano passado, a então corregedora-geral do TJ, desembargadora Lucy Moreira, indeferiu o reconhecimento civil do matrimônio, alegando que os espíritas não têm autoridade reconhecida pelo Estado para oficiar a celebração.
Alguém perguntou que religião professa essa magistrada? É nítido que ela decidiu com base em seus preconceitos pessoais, jamais no Direito, porque, se assim fosse, saberia que o Brasil é um Estado laico, de modo que o Estado não pode reconhecer ou deixar de reconhecer poderes aos credos, práticas e liturgias de qualquer religião. E se, eventualmente, precisar fazê-lo (reconhecimento de efeitos civis ao casamento religioso, p. ex, coisa de que pessoalmente discordo: nenhum ato religioso deveria gerar efeitos civis), só poderia fazê-lo em igualdade de condições para todas as religiões, em respeito ao princípio constitucional da isonomia. Para ela, contudo, católicos e evangélicos têm "autoridade reconhecida pelo Estado" e os demais, não. Antijurídico, imoral e ridículo!


Na época, a desembargadora disse que o espiritismo, ao contrário de outras religiões, não tinha as liturgias e sagrações necessárias à realização de um casamento.
Alguém sabe dizer que "liturgias e sagrações" são "necessárias à realização de um casamento"? Pois é. Nem a magistrada. E se isso está listado em algum lugar, constitui campo de atuação exclusivo da religião, sendo vedado ao Direito dispor a respeito. É proibido pela Constituição.

Os advogados do casal recorreram da decisão da desembargadora e conseguiram uma vitória apertada. Por 11 votos a 10, o TJ autorizou que Cardoso e Leal registrassem o casamento em cartório. A decisão do TJ foi publicada no final de semana no "Diário do Poder Judiciário".
Claro que o placar foi apertado. Consultem a religião dos demais desembargadores.

Os advogados contratados pelo casal alegaram que qualquer religião estabelecida legalmente no Brasil pode realizar a união, já que a liberdade de culto é garantida pela Constituição.
Cardoso e Leal contaram à Justiça que conseguiram toda a habilitação exigida pela legislação brasileira para a realização do matrimônio. "Fomos impedidos de registrar a nossa união porque o casamento foi realizado seguindo as tradições do espiritismo. Mas, depois de oito meses, conseguimos uma vitória maravilhosa", comemorou o comerciante.
Sinceramente, não sei que "tradições do Espiritismo" são essas, mas os advogados estão corretíssimos em seus argumentos. E o casal tem todo o direito de perseguir a própria felicidade.


O médium José Medrado, que realizou a cerimônia, classificou o resultado como uma "vitória da cidadania" por reconhecer a liberdade religiosa do Brasil, sem o monopólio de uma crença.
Na ação encaminhada à Justiça, os advogados do casal alegaram também que a versão atualizada do Código Civil, publicada em 2002, não especifica as autoridades religiosas que podem efetuar casamentos no país.
E nem poderia especificar. Se atentarmos ao fato como coroamento do princípio da igualdade entre todos, realmente houve uma vitória da cidadania.

6 comentários:

Anônimo disse...

Que bom que o casal conseguiu realizar seu desejo e casar da forma que gostariam. Sem dúvida uma vitória da cidadania. Mas, infelizmente a gente ainda encontra pessoas com um certo preconceito em relação a outras religiões, pois eu que sou judia sei muito bem o que é isso. Aliás, históricamente e literalmente falando eu sei como é este preconceito.
Excelente, professor!
aaah! adorei o texto que o senhor escreveu sobre a publicidade em Belém. Não contive o riso!
um abraço.

Yúdice Andrade disse...

Querida Laila, imagino os problemas que enfrentaste até aqui. Mesmo havendo uma comunidade judaica grande em Belém, a predominância numérica dos católicos e sua convicção de que eles é que são normais sempre rendem dificuldades. Uma conhecida minha, de família espírita, foi posta a estudar no Colégio Nazaré - isso lá nos anos 80. Ela era simplesmente expulsa da sala nas aulas de religião, como se não merecess estar ali. Espero que não tenhas passado por nada parecido.

Frederico Guerreiro disse...

Estudei no Nazaré logo que cheguei em Belém (1981)e não vi nada disso por lá.
Em relação ao casamento no espiritismo, vai ver a tal juíza entendeu que: ou foi celebrado por uma visagem, portanto não havia ninguém lá, ou um dos cônjuges estava no além. Fora tais hipótese, só se pode crer na ignorância de quem deveria ser insenta e não atribuir juízo de valor ao ato se estavam atendidos os requisitos do artigo 1516 do CC.

Jadilson Rodrigues disse...

"..Espero que o casal da reportagem tenha agido de forma refletida e não mistificada. Afinal, o fato se deu na Bahia, onde há uma forte tendência ao sincretismo religioso e a fusões que, com todo o respeito, descaracterizam as religiões envolvidas.."
Que desrespeito com o estado da Bahia, você que falou com propriedade, insinuando que a decisão contrária das autoridades se deu por preconceito de religião,me vem com essa frase típica de sulista, fala sério!!!!!!!!!
O texto tá bom ,mas esse preconceito, te igualou a essa autoridades jurídicas!!!!!!!!!!

Yúdice Andrade disse...

Caro Jrodrigues, recebo com humildade a sua crítica. E penso que lhe devo este esclarecimento:
1. Antes de mais nada, não sou sulista. Sou de Belém do Pará e meu Estado é um dos mais discriminados do país. A grande imprensa sulista só se lembra dele para esculhambar. Trabalho escravo, conflitos agrários, impunidade, desmatamento, meninas presas com homens em delegacias, etc. Só falam bem de nós no Círio e, mesmo assim, por alto. Conheço a discriminação, por isso sei o que ela representa e não foi minha intenção reproduzi-la.
2. A referência que fiz ao Estado da Bahia - de onde, presumo, você me escreve - se explica pelo fato de que a mídia explora o tema do sincretismo religioso. Até onde sei, o povo bahiano e as autoridades locais gostam disso. Basta lembrar a obra de Jorge Amado e sua "Bahia de todas as cores, de todos os credos", etc. Não vejo comportamento semelhante em outros Estados. E, ao dizer isto, honestamente, não vejo nada de errado. Por isso, não escrevi com intenção nociva.
3. Tanto não tinha a intenção de ofender que destaquei, como você transcreveu, a expressão "com todo o respeito".
4. Minha maior preocupação, com a postagem, era sobrelevar a diferença entre o Espiritismo e as religiões afrobrasileiras. Sou espírita e há quase 20 anos me aborreço com a confusão que as pessoas fazem.
5. Finalmente, quando sugiro que pessoas podem estar casando em cerimônias não tradicionais sem a devida reflexão, isso não significa uma crítica às religiões ou ao lugar onde o fato ocorre, mas ao comportamento das pessoas. Não tem um monte de americanos que vão a Las Vegas porque lá qualquer um se casa 15 minutos depois de se conhecer? Preocupei-me que coisa semelhante acontecesse no Brasil. Como as religiões tradicionais fazem um monte de exigências, outros setores poderiam realizar esses casamentos sem maiores formalidades.
Enfim, meu caro, talvez eu não me tenha feito entender, mas espero que estes esclarecimentos ajudem a dissipar qualquer má impressão que tenha ficado. Um abraço paraense e conciliador.

Anônimo disse...

Olá,
Se o fato ocorresse em outro estado, você ia levantar que explicação????,mas como é a Bahia....,além disso essa tal mistura que você diz que é prejdicial eu discordo, pois acho que há pessoas que tenham simpatia por mais de uma religião, e essas uniões acabam suprindo essa necessidade, por exemplo uma pessoa que aceite os principios espíritas, mas que gosta também de algum ritual católico....., eu não vi que você era paraense, perdão!!!!!!!!