O sofrimento humano me confrange. É aflitivo ver alguém sofrer, ainda mais se, especulando sobre seu futuro, não se vislumbrar uma possibilidade de mudança.
Vejo os mendigos nos sinais, hoje menos numerosos que os vendedores. Como o número de indigentes aumentou, pergunto-me para onde foram; se desistiram de disputar espaço com aqueles que transitam na periferia do capital. Periféricos que sejam, quase despencando, mas ainda estão numa relação de capital, por isso têm mais acesso aos semáforos. Abaixo deles, os pseudo-artistas, com seus malabares, fogos e pernas de pau. Abaixo de todos, como se fora da cadeia alimentar, os mendigos.
Não dou esmola para crianças. Recuso-me terminantemente. É uma questão moral: por trás daquela criança há um adulto explorador. Certa vez, um menino de idade incerta — talvez 8, talvez 10 (a subnutrição poderia fazê-lo parecer menor) — pediu-me dinheiro. Olhei-o diretamente e, sem pensar, disparei: "Cadê o teu pai?" O garoto recuou lentamente, defensivo; seus olhos escureceram. Jamais saberei se ele nunca chegou a conhecer seu pai ou se este dormia em casa, enquanto o filho descolava um trocado. O garoto apenas foi embora. E eu concluí, por minha própria conta e risco, que não deveria mesmo dar esmola para crianças.
Sou, porém, fraco para velhinhos. No fim da vida, visivelmente maltratados, a dura realidade já lhes autoriza, até mesmo, pequenas chicanas. Que seja ingenuidade, nunca penso que pretendem me enganar. Não imagino que meu óbolo virará cachaça. Para mim, estão um tanto acima de suspeitas — quem sabe porque seus cabelos nevados me remetem a uma tiazinha falecida há dois anos e que também foi muito pobrinha. Uma noite, anos atrás, uma idosa magra, encurvada, pediu-me ajuda. Dei a resposta padrão: "não tenho trocado". Ela se afastou, fazendo uma mesura respeitosa. Um mal estar me invadiu de imediato. Juntei uns trocados, fui atrás dela e lhe entreguei. Ficou vivamente agradecida, sem o menor laivo de reprovação por eu lhe ter mentido. Ficou apenas satisfeita e foi embora. Carregava duas sacolas de supermercado, com não sei o que dentro. A ela pareciam pesadas. A visão dela caminhando, tão desamparada, sobrevive em mim — tanto que saltou para este texto.
Outro dia resolvi dar umas moedas para um deficiente. Como não somavam um real, tratei de me justificar: "desculpe, mas só tenho esta besteirinha". E ele, na bucha: "Besteirinha, doutor? Que é isso!" E abriu um sorriso largo, que não transparecia o menor aborrecimento com nada. Acho que ele realmente acreditava que eu lhe fizera um grande bem. Um sentimento de vergonha me chegou como um tapa na cara. Eu chamara de "besteirinha" o que para o pedinte valia muito. E ele nem me recriminou. Pisei no acelerador humilhado, a ponto de ter dificuldade em contar o ocorrido a minha esposa. Graças a Deus, ela é condescendente.
Decidir quem receberá minha esmola é sempre muito difícil. Meu último grande pecado nessa seara foi recente: parado num sinal vermelho, flagrei-me desejando que abrisse, para não dar tempo ao mendigo de chegar até mim. As moedas estavam na minha mão. Se ele me alcançasse, eu as daria, quase como se não tivesse escolha. E eu apressava o semáforo para escapar dessa doação compulsória. Oxímoro, mas essa é a melhor designação. E o verde apareceu, sem que a mão se me estendesse. Escapei, exceto de me julgar pesadamente, pela indigna e incompreensível atitude.
Nem todos recebem meu dinheiro. Mas todos veem os meus olhos. Nunca os ignoro. Posso responder sem olhar a um vendedor, mas nunca a um pedinte. Nego, justifico-me que não tenho (desculpa meio difícil de engolir, já que ando metido num terno), mas encaro o meu interlocutor. Ele sabe que eu o vi e lhe dei, ao menos, um instante de atenção. Nego, mas peço desculpas.
Uma coisa qualquer mendigo recebe de mim: um mínimo de dignidade. Sempre. Para mim, ninguém é invisível.
8 comentários:
Êta, professor. Excelente texto, que conseguiu resumir um pouco do que acontece comigo também. Empatia, é como chamam, não?
Mas se vc com toda esta veia benfazeja ainda sente constrangimento de suas saudáveis e bondosas atitudes, sinto-me um crápula.
Já valeu por provocar alguma mudança real em meus pensamentos neste final de dia cansativo e extenuante.
Abraços sinceramente agradecidos.
Yúdice, com certeza as tuas experiências são as mesmas de muita gente, mas os teus sentimentos e atitudes são de poucos. Sempre comento um caso de um amigo que deu uma moeda de dez centavos, a única moeda que tinha no momento, a uma criança que pedia dinheiro no sinal, e ela reclamou e jogou no chão. Meu amigo, uma pessoa muito gentil, desceu do carro, pegou a moeda, olhou pra criança e falou: "se você juntar mais uma como essa dá pra comprar um pão e comer". Guardou a moeda, entrou no carro e foi embora.
Como é tênue e efêmero a linha pelos olhos que liga ao real.
As criancinhas do arraial
De Campos Ribeiro
Pela avenida iluminada
Dentro da festa do Arraial,
Os pequeninos
Que têm fome,
Esses meninos
Que não têm pai, que não têm nome
Passam a vida resignada
Dos que não sabem porque sofrem tanto mal
E que tristeza comovida,
Ai que tristeza nos olhinhos
Olhos que, à noite, eu sempre vejo,
Que eu vejo sempre a olhar a vida,
Olhando, triste, num desejo
Os barracões de brinquedinhos.
......
E hoje, Yúdice, eles estão por toda a parte. Talvez o vermelho do semáforo seja também, uma metáfora para todos nós.
Bjs,
Cris Moreno
Como disse José Martí:
"A miséria não é uma desgraça pessoal, mas um desmando PÚBLICO".
Yúdice, qual é o teu itinerário, mano?
Isso mesmo Yúdice. São com gestos e não com patadas que esse mundo pode ficar melhor pouquinha coisa.
Belas palavras. Parabéns.
Fiquei emocionada com o seu texto. Poderiamos aproveitar a Semana Santa para refletir e até fazer um pouco pelo próximo que está longe da nossa realidade mas totalmente inserido na realidade brasileira que teimamos em não ver.
BARRETO, empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro. Foi isso que sentiste? Seja como for, fico feliz se consegui provocar um efeito dessa magnitude em uma pessoa com tão vitais ocupações. Crápula, nunca. Se fosses um, não terias o sentimento que manifestaste no comentário.
IVAN, teu amigo fez a coisa certa, acho. Infelizmente, não há quem ensine moralidade para essa criança. Penso que nossos sentimentos são parecidos.
CRIS, lindo poema. Grato pelo carinho.
1º ANÔNIMO, também penso dessa forma. Mas não podemos apontar as mazelas dos governantes sem, pensar, antes em como nós mesmos lidamos com o problema, como seres humanos e cidadãos.
FRED, os fatos narrados se deram em São Brás (semáforo da caixa d'água), na esquina seguinte (José Bonifácio com José Malcher) e ao londo da Duque. O da velhinha, em frente ao Tribunal de Contas do Estado. Volta e meia, em algum outro lugar.
VAL-ANDRÉ, tenho usado mais as patadas. Por isso, ontem fiz questão de uma postura diferente.
2ª ANÔNIMA, não me tenho como baliza para provocar reflexões, mas se elas vierem, que muitos delas compartilhem.
Uma feliz semana santa pra todos.
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