sábado, 30 de agosto de 2008

O mito do juiz imparcial

Vale muito a pena ler o excelente artigo abaixo, que mostra como é fácil derrubar o mito da imparcialidade do juiz. Basta ler o que ele escreve.

Juízos perigosos
Ninguém reconhece que julga conforme impressão pessoal
por Eduardo Mahon (advogado)

Nenhum juiz reconhece que julga conforme suas impressões pessoais sobre o acusado. Preferem dizer que julgam os fatos. Não é verdade. Os magistrados, ainda atentos à etiologia e teorias do risco, ainda centram suas sentenças nos supostos “índices de periculosidade” do autor, atuando mais como psicólogos do que julgadores, aplicando seus próprios valores sobre terceiros, numa fundamentação essencialmente jurídica. Uma rápida consulta ao banco de sentenças do Tribunal de Justiça de Mato Grosso é capaz de desvendar essa armadilha neo-positivista.
Convido o leitor para ler referências reais de sentenças e decisões penais do estado de Mato Grosso e refletir sobre elas. Com objetivo de facilitar a leitura, não colocarei entre aspas e sim aplicarei o itálico como método de referência à fala judicial selecionada. Para alguns, a “periculosidade” é, simplesmente responder a outro processo criminal, como se extrai: o fato dela encontrar-se respondendo a processo, pela mesma pratica delitiva, evidenciando sua periculosidade. Para outros, a afetação social são causas de “periculosidade”: assim, a presença de duas causas de aumento de pena denota maior periculosidade do agente, que agride a ordem social de modo mais exacerbado e maior risco para a vítima, impondo, por conseqüência uma majoração acima do mínimo legal.
A prevenção especial ainda é utilizada pelos magistrados, cotejando a pena pela iminência da agressão à sociedade ou da probabilidade calculada pelo próprio magistrado, conforme se pode observar: Portanto, permitir que elementos desse nível de periculosidade tenham acesso à sociedade novamente, antes de efetivamente cumprirem suas penas, é expor a vida de inocentes a perigo.
Considerações de ordem moral, ética, social, psicológica também são freqüentes na definição de “periculosidade”. Termos como destemor, sordidez, baixeza e outros termos subjetivos também se fazem maciços. Observemos alguns casos onde os conceitos pessoais do juiz foram determinantes: a) revela audácia e destemor do agente da infração, além de completa insensibilidade moral, despida de valores éticos, denotando intensa periculosidade, todo a exigir repressão mais rigorosa; b) revelando alto grau de periculosidade, haja vista tratar-se de crime hediondo, repugnante e sórdido; c) às circunstâncias ficaram estampadas face da audácia e periculosidade do agente, visto ter praticado o crime a luz do dia em local movimentado da cidade, demonstrando uma total insensibilidade; d) revela audácia e destemor do agente da infração, além de completa insensibilidade moral, despida de valores éticos, denotando intensa periculosidade, todo a exigir repressão mais rigorosa; e) revela pela sua conduta alta periculosidade social, ausência de limites e de senso crítico, além de preocupante ousadia.
E, finalmente, julgam conforme o conceito social do delito e não conforme a própria legislação, agravando-se assim duplamente a pena: devendo prevalecer o bem-estar social sobre o individual, pois a quantidade de substância entorpecente encontrada com o denunciado evidencia a sua periculosidade e a conduta do mesmo, que revela-se extremo risco à ordem pública, com a prática de um crime abominável para a sociedade.
Todavia, separei três casos extremamente significativos. O primeiro diz respeito à medicalização do Direito Penal. O magistrado repassa a responsabilidade penal a outros órgãos estatais a coadjuvar uma pena indeterminada. Observemos: determino que a perícia médica para apurar a sua periculosidade seja realizada no prazo de um ano, ficando a incumbência a cargo da Secretaria Municipal de Saúde. O segundo caso emblemático diz respeito ao julgamento conforme a opinião pública, sendo essa a justificativa para mensurar a “periculosidade”.
O juiz cita o clamor social e o interesse público como elementos jurídicos capazes de majorar a pena, conforme se vê: há que se ter em vista a necessidade de manutenção da ordem pública em crimes de tamanha gravidade, que não apenas suscitam clamor público como revelam periculosidade de seus autores, devendo o interesse da sociedade prevalecer em detrimento do direito individual do réu, independentemente das condições pessoais que este possa ostentar.
Quero sublinhar o final — é perigoso o réu pelo clamor social, independentemente das condições pessoais exibidas em juízo. E, por fim, o magistrado utiliza-se da repercussão do fato nos jornais para amparar o seu entendimento: no caso dos autos, o acusado, em concurso de agentes, desempenhou atuação extremamente audaz, com elevada periculosidade, tendo causado verdadeiro sentimento de pânico nas vítimas, o que foi amplamente reproduzido pelos veículos de comunicação local.
Ao estudar o banco de dados do TJ-MT, exceção deve ser feita a três magistrados que discutem a questão da indeterminação da “periculosidade” e seu conteúdo profundamente subjetivo e ideológico: Célia Vidotti, João Alberto Menna Barreto Duarte e Douglas Romão. Pesquisando todas as indexações contidas no repositório de jurisprudência, extraio o nítido delineamento de várias teorias que são mal absorvidas e misturadas entre si: o Direito Penal do autor, seja pelo finalismo, seja pelo funcionalismo penal. E algumas tendências: a) julgar conforme a moral e ética pessoal; b) julgar conforme o clamor público; c) julgar conforme a mídia; d) identificar o inimigo na zona de pobreza, protegendo os bens jurídicos ligados ao patrimônio; e) não há qualquer sistematização da definição de “perigoso”, sendo completamente arbitrária a fixação do conceito. Afinal, quem é mais perigoso?
Revista Consultor Jurídico, 30 de agosto de 2008

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