sábado, 9 de abril de 2011

Morremos como vivemos

Ao final do magnífico documentário Ônibus 174 — que retrata a vida de Sandro Barbosa do Nascimento, sobrevivente da "chacina da Candelária" e autor de um dos episódios criminais mais conhecidos do país, e que levou o cineasta José Padilha (Tropa de elite 1 e 2) à fama — vemos o enterro do jovem criminoso. Acompanhava o corpo uma única pessoa: sua mãe adotiva, que atira umas flores na cova simplória e especula, chorando, que Jesus o perdoará. Mais cedo, a tia biológica do rapaz — que já nos contara do trauma por ele sofrido ao ver a mãe, gestante, ser assassinada a facadas — informara, também chorando, que não pode ir ao enterro por medo de represálias. Afinal, ela era a tia do bandido.
Desde que começou a cobertura jornalística sobre o massacre na escola Tasso da Silveira, sabe lá por qual razão, martela-me a cabeça uma curiosidade: o que será feito do cadáver de Wellington Menezes de Oliveira, o inimigo público n. 1 do Brasil (esta semana)? E isso antes mesmo de saber que ele deixara uma estranha carta dando instruções sobre o que fazer com seu corpo e pedindo que, se possível, fosse posto ao lado de onde sua mãe dorme.
Minha curiosidade tem a ver com o fato de antecipar que nenhum parente reclamará o corpo do atirador de Realengo. Um de seus cinco irmãos, encontrado por jornalistas "próximo a Brasília", nem quis se identificar, por medo das implicações. Quem, a esta altura, há de querer associar-se ao matador, por mais inocente que seja? Com isso, o Município o enterrará como indigente, com certeza.
Alguns aspectos curiosos podem ser observados nesse caso, que nos remetem a sanções morais de triste memória, já abolidas formalmente do ordenamento jurídico — o que não impede de continuarem a ocorrer na realidade.

Execração da memória
Pena de origem religiosa, mas depois assimilada pelo poder temporal, dava ao criminoso (normalmente alguém que cometera crimes contra o soberano, ou que caíra em desgraça perante este, mesmo sem jamais ter perpetrado qualquer violência) a condição de "maldito". Seu nome e sua lembrança deveriam ser odiados para sempre e, frequentemente, o opróbrio se estendia a seus descendentes. Era comum que o juiz assinasse, na sentença, quantas gerações seriam atingidas pelo anátema. Veja-se o caso de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, cujo único crime foi tramar, com outros, a independência do Brasil (e ser pobre, porque os conspiradores fidalgos foram condenados, porém tiveram melhor sorte). Na sentença que o condenou, além da pena de morte, foi prevista a condição de maldito, por si e por seus descendentes até a 4ª geração.
Além da violação ao princípio da intranscendência da pena (somente aquele que cometeu ou participou do crime pode merecer uma pena), os filhos, netos, bistetos e trinetos, ainda nem nascidos, sofriam a condenação. Todavia, como naquela época não havia registro civil (os documentos mais confiáveis sobre a identidade das pessoas eram os "banhos", assentos de batismo que podiam ser encontrados nas igrejas), o prejudicado podia simplesmente mudar de nome, para qualquer coisa que não o relacionasse nem de longe ao condenado que, assim, caía no esquecimento até mesmo entre os seus.
A execração da memória de Wellington é absolutamente garantida, pelo sentimento espontâneo da sociedade e pela manipulação midiática. E mesmo que parentes de vítimas fatais tenham dito aos demais enlutados, durante os velórios, que esquecessem qualquer ideia de justiça com as próprias mãos (odeio esta expressão!), não faltará gente para bradar aos céus contra o morto e, inclusive, para deixar na caixa de comentários desta postagem as habituais idiotices que me escrevem e que eu, na maior parte dos casos, simplesmente deleto.
Seja como for, Wellington já foi abandonado também por sua família, como morto.

Negativa de sepultura
Também oriunda do Direito Canônico, negava aos proscritos o direito aos ritos religiosos e a uma sepultura em solo consagrado. Atingia habitualmente os suicidas, mas atingiu também um dos maiores escritores gregos de todos os tempos: Nikos Kazantzakis, em 1957. Seu crime? Escrever o belíssimo romance A última tentação [de Cristo], incluído pelo Vaticano no Index dos Livros Proibidos.
No caso de Wellington, rejeitado pela família (acuada ou por vontade própria, ignoro-o), ele não terá direito a uma sepultura, senão à vala dos indigentes. O que pode até ser bom, para evitar a criação de um espaço de visitação hostil, sujeito a atos de vandalismo ou, pior, ao culto de gente doida varrida, alucinada por violência.

No final das contas, o caso de Wellington parece confirmar a máxima segundo a qual morremos conforme vivemos. No caso dele, sozinho e detestado.

3 comentários:

Frederico Guerreiro disse...

Neste país, o que importa não é a justiça, mas o prazer da vingança.

Anônimo disse...

ah,yúdice!Mas que postagem triste!infelizmente,vejo muita razão na tua escrita.a única coisa que deram pra esse homem foi sofrimento e tristeza,e portanto,ele só soube passar adiante sofrimento e tristeza tambémo que mais ele poderia oferecer?por essas e outras,acho que muitos não tem o direito de se reproduzir,pois não basta ter o filho,mas ser responsável pelos valores ensinados a ele-ou a falta dos mesmos-
não pretendo fazer qualquer descaso com o sofrimento dos familiares e crianças,mas em alguma medida,esse homem também foi vítima.

Yúdice Andrade disse...

Contra todos, Fred. Ou contra qualquer um, como estamos vendo nesse caso.

Das 19h08, o pior é que as pessoas fazem julgamentos morais absolutos, sem ter a menor ideia do que realmente se passou. Sabemos de um fato, de certa forma bastante isolado, mas não de todas as suas conotações.
Insisto, é claro, que não se pode minimizar de modo algum o ocorrido, nem é minha intenção vender qualquer simpatia pelo atirador. Mas sempre faço questão de conclamar as pessoas a ir além do óbvio, do senso comum e da crítica bovinamente repetida, sem qualquer criticidade.