quarta-feira, 27 de abril de 2011

Provincianos e rancorosos

O jornalista Hiroshi Bogéa, em seu blog, criticou a postura da imprensa paraense em relação à estudante Letícia Caroline Ribeiro (14), que ficou em segundo lugar no concurso "Soletrando 2011", promovido pelo programa global Caldeirão do Huck. Escreveu o jornalista:
Aqui em nossa terrinha abençoada, a menina Letícia Caroline Ribeiro, de 14 anos, merecia bem mais do que os alvoroços iniciais da mídia exaltando sua passagem à finalíssima da atração anual do excelente programa do Luciano Huck.

Nem bem terminou a disputa entre os dois jovens, com derrota da paraense, silêncio sepulcral abateu-se sobre o tema, aqui na seara paraora. E olha que Letícia repetia a dose ao ir pela segunda vez à final do quadro educativo, enfrentando, também, um representante do Estado do Piauí.
Mais do que o título nacional, deveria ser valorizada a figura da garota pobre, estudante de escola estatal, como instrumento motivador de milhões de jovens paraenses, como ela, alunos de escolas públicas.
Em comentário que fiz à postagem, ponderei que paraense tem o grande defeito de dramatizar demais o que é bom e o que é mau. É a velha síndrome de coitadinho que provoca reações imbecis, estimuladas ao extremo pela mídia. Este caso é bem característico.

Os três finalistas. Havia um obscuro dialeto
angolano no caminho de Letícia.
 Quando Letícia foi à final, fez-se um estardalhaço em torno da “representante do Pará”. Sempre que um paraense tem algum destaque positivo fora, ganha logo uma credencial de representante de todo o Estado. Aquela babaquice de fulano está levando o nome do Pará para o Brasil e o mundo! O engraçado é que se um atleta ou artista de outro Estado ganha repercussão, ele é apenas o atleta ou artista Fulano de Tal. Mas se nasceu para estas bandas, ele é o atleta ou artista paraense e ganha o peso de ser uma espécie de embaixador de seu povo. Queira ou não.
Isso é provincianismo de última categoria. Mas como se não bastasse, o paraense é também rancoroso e não sabe perder. O tal embaixador é obrigado a vencer. Se não o fizer, é tratado como um fracassado e cai em ostracismo imediato.
Letícia ficou em segundo lugar e a imprensa deixou de se importar com ela. Mas ela merecia homenagens pela segunda colocação. Primeiro porque derrotou os candidatos dos Estados que normalmente levam a melhor em tudo e perdeu somente para o candidato do Estado de menor índice de desenvolvimento humano (IDH) do país, mas que, a despeito disso, tem mostrado indicadores interessantes na educação. Além de o Piauí vencer o "Soletrando" pelo segundo ano consecutivo, aquele Estado também possui a escola classificada pelo ENEM 2010 como segunda melhor do país.
A coisa piora. Letícia foi eliminada por errar a palavra "caçanje", que eu p. ex. jamais escutara antes na vida. Conheci a dita cuja lendo a notícia na página do programa global. Aposto que você também não conhecia. A representante do Paraná, que ficou em terceiro lugar, errou o vocábulo "estremecer", o que considero um vexame, já que é muito fácil.
Tive que correr atrás de informações para saber o que, afinal, é caçanje. Descobri que se trata de um dialeto crioulo utilizado em Angola (soltei um palavrão, nesse momento) e, por extensão, significa "português mal falado ou mal escrito" ou "linguagem estropiada". Jesus Cristo, quem saberia disso?! Sem entender o que a palavra é e de onde se origina, fica impossível soletrá-la simplesmente com base na lógica. Não dá para saber se a palavra é escrita com "ç" ou "ss" ou se com "j" ou "g". Eu teria errado fácil, essa.
Letícia, saiba que errar uma palavra dessas não é demérito algum. Você foi ótima. Mas Izael também foi, ao acertar outro vocábulo obscuro, "abaçaí", de origem tupi, que designa um espírito gigante e maligno que perseguia os índios para enlouquecê-los. Há quem traduza como "homem que espreita, persegue" e como "pessoa de respeito". Isso segundo minhas buscas na rede, porque também nunca ouvira falar.
É de se lamentar o comportamento dos paraenses. Letícia devia ser reconhecida publicamente, pelas autoridades, por seu excelente desempenho, inclusive como forma de estimular outros adolescentes a se empenhar nos estudos — única alternativa de mudança de vida, para muitos. Como não foi, fica aqui o reconhecimento de dois blogueiros, paraenses com orgulho, mas sem frescura.

***

Por oportuno, faz nove dias que a presidente Dilma Rousseff escolheu os três novos ministros do STJ, pelo quinto constitucional. São eles: Antônio Carlos Ferreira, Sebastião Alves dos Reis Junior e Ricardo Villas Bôas Cuêva. Dois paulistas e um mineiro — o que levou uma conhecida a dizer que a política do café com leite continua vigorando no Brasil.
A escolha dos três supranominados implica em que o advogado paraense Reynaldo Andrade da Silveira, constante de uma das listas tríplices, foi preterido. Ninguém se lembrou de dizer que, mesmo diante do insucesso, ele é um profissional de valor, que está à altura da função. Se tivesse sido nomeado, aí sim ganharia as primeiras páginas como legítimo representante da imensa Nação Pará.
Coisa de paraense. Triste.

7 comentários:

Anônimo disse...

É mais do que bom ler comentários, até porque a visão do assunto muda totalmente. Estou mais do que enquadrada nos provincianos, e sinceramente, fiquei envergonhada, já que não tinha me perguntado o que era feito de Letícia, nada de homenagens, reportagens, a torcida e tal... Você tem razão.

Edyr Augusto Proença disse...

Parabéns pelo post, Yúdice. Agora, tanto "caçange" quanto "abaçaí", confesso, nunca tinha ouvido. Eu tb seria reprovado, com certeza. Parabéns à nossa paraense.
Edyr

Artur Dias disse...

De fato, a estudante foi exemplar, inclusive por ter reconhecido as regras do jogo, considerando que uma tal palavra poderia, sim, aparecer, já que está dicionarizada. Digo isso porque já vimos ocasiões em que os maus perdedores simplesmente passaram a botar a culpa nas regras.

Maria Cristina Maneschy disse...

Muito boa a lembrança sobre a Letícia, que bem mereceria receber um prêmio por aqui, em reconhecimento de seu mérito e como estímulo aos seus pares.

Yúdice Andrade disse...

Das 24h13, você me se declarou provinciana e, diante de sua autocrítica, não compreendo o motivo pelo qual você se classificou assim. O importante, mesmo, é ter reconhecido que a menina Letícia é maior do que a forma como a tratam.

Parabéns a ela, Edyr!

Não vi o programa, Artur, por isso teu comentário me dá uma visão maior sobre o episódio. De fato, isso a torna ainda mais respeitável.

Nessas horas, Mª Cristina, não aparece nenhum vereador para propor, ao menos, uma moção de elogio oficial à menina. Nada na Assembleia, nada em canto algum. Uma lástima.

DANIEL COUTINHO DA SILVEIRA disse...

Yudice,
Obrigado pelo elogio ao meu pai.
Independentemente de qualquer discussão específica, sempre achei absurda essa coisa de considerar paraenses que alcançam algum destaque como nossos legítimos representantes ou vergonhas inomináveis. Meus dedos não encolhem quando o Mike do Mosqueiro vai em cadeia nacional dizer que é paraense, nem meu peito estufa quando a inteligente Letícia alcança a final do concurso.
Os paraenses se sentem diminuídos por vários motivos (alguns deles legítimos) e buscam se afirmar nessas ocasiões, tentando demonstrar que aqui há algo de bom ou excomungando aqueles que nos fazem vergonha. Certamente é importante ressaltar nossas qualidades, mas é que acho ainda mais importantes aumentar a abrangência delas.
Assim poderemos brigar pela nossa inclusão em discussões nacionais e internacionais, não como um favor, mas como imposição por aquilo que podemos oferecer.
Chega desse regionalismo barato. O caminho mais curto para crescermos é admitirmos nossas falhas. Sabendo delas, devemos agir para superá-las. E nunca mais teremos de analisar as pessoas pelo local em que elas nasceram, mas quanto aquilo que se propuseram asim por fazer.
Abraço!

Yúdice Andrade disse...

Estamos plenamente de acordo sobre nossa visão de torrão natal, Daniel. Quando vejo meus colegas de docência e alunos, p. ex., penso que deveríamos escrever muitos trabalhos acadêmicos, publicá-los, fundar instituições de pesquisa, criar trabalhos inovadores, etc. Fazer acontecer. Não porque o Pará precisa ocupar espaços, mas porque esse é o caminho para o desenvolvimento da sociedade. Com o tempo, todos perceberiam o valor do que é produzido aqui.
Para ficar num único exemplo, que me é próximo. Um abraço.