sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Todos são iguais perante a lei...

O Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil – em mais uma de suas frequentes reuniões, produziu uma carta à Nação em face da prisão de dois magistrados em Rondônia, um deles presidente do Tribunal de Justiça daquele Estado.

Destaco a elegância da linguagem, em padrão muito superior ao do brasileiro comum, alijado da escola (de qualidade, ao menos). Reflete, na origem, o distanciamento histórico entre o judiciário e a sociedade.

O discurso está centrado em princípios – comandos éticos que presidem a elaboração das leis – e no ideal de respeito à dignidade humana. Estarreço-me. As decisões judiciais em geral costumam externar aversão a princípios, tidos por mero academicismo. Ao julgar, raramente os magistrados se afastam dos comandos explícitos da lei e, quando a interpretam, assustam. Quanto à dignidade humana, sempre é preterida, porque a orientação vigente é garantir a segurança jurídica e a necessidade de dar uma "resposta à sociedade", aterrorizada pela criminalidade excessiva.

O primeiro parágrafo é arrasador: "No regime republicano, todos devem responder pelos seus atos, sem qualquer exceção. Do mais alto dignatário da Nação ao mais humilde cidadão, todos se sujeitam aos rigores da lei." A verdade é que, do mais alto dignatário da Nação ao mais humilde cidadão, todos sabem que, no Brasil, isso é balela. Dizer que os bem aquinhoados pela fortuna são punidos beira o cinismo.

Como lhes é vedado, aquelas autoridades não fizeram juízos sobre a culpabilidade dos acusados. Entendem que "a verdade haverá de resultar da imparcial apuração dos fatos pelas autoridades competentes, obedecidos os procedimentos legais e respeitado o direito de defesa, garantia de todos". Estou convicto de que todos os procedimentos legais serão respeitados e que aos acusados será assegurada a ampla defesa. Afinal, são magistrados; os contatos que mantêm e o patrimônio que possuem estão a serviço dessas prerrogativas constitucionais, como não ocorre com a maioria esmagadora dos réus, que não têm direito à imparcialidade – são tratados como culpados desde logo e se lhes exige provar a própria inocência!

Repudia-se a prisão "espetaculosa" dos acusados, expostos algemados aos meios de comunicação, à execração pública, sendo assim "antecipadamente condenados, a despeito do princípio constitucional da presunção da inocência, da nossa tradição jurídica". Curioso. Nunca percebi essa preocupação em relação aos ladrões de galinhas. Estes podem ser expostos à execração pública – são obrigados a se deixar filmar e fotografar para exploração pela imprensa junto a legendas espirituosas. Estes sofrem prisões preventivas que se eternizam na lentidão dos processos, mas isso não afronta o estado de inocência. Sempre se encontra, por meio de especulação e raciocínios abstratos e preconceituosos, uma justificativa para mantê-los presos. Estes são sempre algemados, mas isso não denigre a sua imagem.

Nesta nossa Belém do Pará, a polícia usa picapes e transporta os presos na caçamba, onde o Código de Trânsito proíbe expressamente que se conduzam pessoas. Viajam só de cueca, presos à grade, desfilando por toda a cidade, sob o escárnio de todos que os veem. Já vi um preso, algemado, ajudar a empurrar a viatura que o conduzia. Mas nada disso constitui menosprezo à dignidade humana.

Ao final, os magistrados evocam a "serenidade própria" de seu ofício, que junto com a imparcialidade (rectius: isenção; o juiz é imparcial porque efetivamente não é parte do processo) constitui mito judiciário, hoje incapaz de convencer até as criancinhas. Concluem que a "exposição de pessoas e instituições a julgamentos emocionalizados pode causar-lhes danos irreparáveis, ainda que reconhecida eventual inocência no futuro". A preocupação em acalentar seus pares é tanta que até um neologismo foi criado: emocionalizado. Assim são os julgamentos a que juízes são submetidos. Mas não aqueles que recaem sobre o desempregado, o sem escola e o sem oportunidade.

É por essas e outras que avulta uma verdade indiscutível: todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais que os outros.

Em tempo, o presidente do TJ de Rondônia foi preso no dia 4 de agosto. No dia 22, o STF negou-lhe habeas corpus.