Dormi engasgado esta madrugada, após assistir a uma reportagem sobre a aprovação, em nosso valoroso Congresso Nacional, de projeto de lei que permitirá ao poder público quitar em 15 anos as dívidas representadas pelos precatórios já existentes. 15 anos! E para os precatórios que já estão na fila, há anos, alguns há décadas.
Sempre repito que o maior inimigo do cidadão é o Estado. Mas a dolorosa veracidade dessa afirmação não precisava ser lembrada com tanta frequência e veemência. Acho que nenhum cientista político — assim denominando inclusive os clássicos iluministas — está totalmente pronto para enfrentar o divórcio absoluto entre o tema da legitimação do Estado e a realidade do Brasil.
O Executivo pressiona, o subserviente (e negociador) Legislativo aprova e, para desespero geral da Nação, há boas chances de o Judiciário fazer o que tantas vezes fez (como nos casos de interesse tributário da União, nos tempos de FHC) e, com ou sem fundamentos jurídicos para tanto, decidir de acordo com as conveniências de quem tem a chave do cofre. Assim se vai resolvendo — empurrando com a barriga seria o correto — os problemas de fluxo de caixa da União, dos Estados e Municípios perdulários, mal gerenciados e alvo de eternas pilhagens. Enquanto isso, do outro lado, centenas de milhares de brasileiros aguardam créditos legítimos, já definitivamente constituídos perante o Judiciário. Boa parte deles de natureza alimentar e, por isso mesmo, urgentes.
Bote sua urgência no saco por mais 15 anos. Enquanto isso, brasileiros idosos chegarão aos termos de suas vidas e o problema passará a ser de seus herdeiros e sucessores — filhos, netos e sabe Deus o que mais. Afinal, daqui a 15 anos, um outro projeto, quem sabe...
É nessas horas que a tese da desobediência civil me volta à mente.
Ninguém em minha família tem precatório a receber. A questão não me atinge diretamente. Minha indignação é de cidadão, não de interessado. Aliás, sou interessado em que o Estado brasileiro não faça de mim um palhaço e uma vítima, porém cada dia fica mais claro que é tolo ter essa esperança. Somos roubados o tempo todo. Começa pelos impostos, passa pela corrupção, chega-se às negociatas feitas para beneficiar esse ou aquele setor econômico e por aí vai. Inclua-se na conta tudo aquilo que pagamos à iniciativa privada para ter acesso a serviços que o Estado deveria assegurar e não o faz. Inclua-se também a vigilância feita pela Fazenda Pública. Ganhou um dinheirinho? Não se esqueça de declarar ao Leão, até o último ceitil. Do contrário, você terá seríssimos problemas. Mas só você. Se fossem inversas as situações — você, credor do governo —, aí a coisa seria muito diferente. E respaldada por lei!
A proposta feita pela OAB de São Paulo — Estado onde o calote é mais violento — é perfeita: se não há dinheiro para pagar, então que se permita ao cidadão compensar esse crédito com dívidas tributárias ou para compra da casa própria, p. ex. Seria perfeito para o cidadão. Já pensou? O Estado se livraria de um precatório e o cidadão, de um financiamento imobiliário. Mas é claro que a proposta não será sequer cogitada. Por que os vagabundos querem dinheiro. Dinheiro vivo, a rodo e nosso!!!
Acho que os brasileiros deveriam parar de pagar impostos, a partir de um movimento ostensivo e generalizado, no qual ficassem claros os motivos determinantes da medida. Deveriam consignar o valor em juízo e pedir à Justiça que condicionasse a liberação a determinadas pretensões, tais como a compensação dos valores com precatórios. Não se trata de uma boa tese jurídica, mas de marcar posição cidadã. De enfrentar o Leviatã de nossos dias, ferindo-o na única parte sensível de seu corpo: o bolso.
Acho que dá para perceber o quanto estou indignado.
4 comentários:
"É nessas horas que a tese da desobediência civil me volta à mente."
Em geral quando tenho o mesmo pensamento ouço: "Seu subversivo!"
Para mim soa como elogio.
Aidna vou te convencer de que o Anarquismo é o melhor sistema heheh
Abraços!!!
Meu amigo,
o post é primoroso. Primeiro pelo tema. A eterna submissão e servilidade do cidadão frente ao Estado não tem e fim nem limites. Segundo, pelas colocações oportunas e inatacáveis, com as quais comungo desde que vi arimeiraígla e um livro de Direito. Você está coberto de razão: o maior inimigo do cidadão é e sempre foi o Estado. O curioso é que não importam nada princípios jurídicos de interpretação, tais como pro reo, pro misero, pró-consumidor, a demonstrar de forma inequívoca que o Direito procura acalantar os fracos. Nas searas administrativa e tributária (mormente nestas), a ordem é supremacia do interesse público e dane-se o indivíduo, postulado que serve de escudo retórico para as maiores arbitrariedades e ilegalidades que, ao final das contas, apenas viram estatística neste país. Por essa razão advogados experientes, rodados na vida forense, a todo tempo repetem, como um mantra, que quando o Estado quer sacanear lei e merda são a mesma coisa. A merda ao menos serve de adubo.
O insólito de tudo isso é que os membros do legislativo exercem mandato, ou seja, são revestidos de poderes concedidos pelo povo, e a lógica mais elementar nos diz que quem recebe poderes para determinado fim deve atuar de acordo com os interesses daqueles que outorgaram tais poderes. Em suma: as leis deveriam ser, na medida do possível, sempre confeccionadas pró-sociedade e pró-cidadão (colocando ambos os interesses em harmonia e não em conflito), assim como a interpretação do Direito, em geral, deveria ser a favor dos cidadãos. Mas não. Duvido se, por trás desta lei, na exposição de motivos, não há algo a respeito do interesse público (o secundário sempre se sobrepondo ao primário), da coletividade (esquecem-se das necessidades dos indivíduos que a compõem), e por aí vai, da reserva do possível, argumentos padrões para impedir que o Estado cumpra com suas obrigações constitucionais.
Não à toa Hugo Brito de Machado disse certa vez que "Em qualquer interpretação jurídica, não há terceira alternativa: ou somos a favor do poder ou somos a favor da liberdade da cidadania. Não existe uma terceira alternativa ou uma coluna do meio. O Direito é um instrumento da liberdade, portanto, não aceito a interpretação que prestigia o poder, massacrando a liberdade. Por isso que eu – refutando de logo a afirmação de que estou dizendo isso porque estou aposentado, o que não é verdade, porque venho dizendo isso há mais ou menos quinze anos – digo que o jurista que se ocupa, que dedica o seu tempo na defesa de teses autoritárias, está esquecido de que são autoridades apenas alguns – e durante algum tempo – e enquanto que cidadãos o somos, todos nós, durante toda a vida".
Um igualmente indignado Marcelo Dantas.
Não me convencerás quanto ao anarquismo, Jean, mas verás que concordamos em mais aspectos do que supões. Um abraço.
Marcelo, teu comentário vai a postagem específica.
Yúdice,
O maior inimigo do Cidadão não é o Estado em si. Penso que precisamos de um Estado Forte tanto para garantir os direitos sociais previstos na Constituição como também os direitos individuais e políticos, sem cair na "estadolatria" ou numa visão passiva da cidadania (o que é até uma contradição em termos).
Em vez do Estado, penso que os maiores inimigos do Cidadão são certos grupos políticos que, ao assumirem o comando do Estado, o fazem autocrático, superior e surdo a todo e qualquer escrúpulo democrático ou crítica pública, perpetuando um estamento burocrático de matiz patrimonialista, como já advertia Raymundo Faoro. Este é o caso da presente proposta. Em vez de livrar o cidadão do Estado, penso que é mais profícuo livrar o Estado de pessoas como a Senadora Kátia Abreu (DEM), relatora deste atentado contra o Estado Democrático de Direito. Isso só se faz com a pressão das ruas e com a força das urnas.
Um grande abraço,
David.
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