O surgimento de um feriado não depende apenas do gosto dos interessados. Formalmente falando, é claro. No mundo do dever-ser, um feriado exige lei — federal, estadual ou municipal — instituindo a data (e existe uma lei federal estabelecendo um número máximo de feriados por ano, sabia?), medida necessária para resguardar os direitos dos trabalhadores, que podem assim usufruir do dia ocioso sem prejuízos a sua remuneração e demais direitos trabalhistas. Mas num país em que o trabalho não é valorizado como algo útil, pois útil mesmo é só a vadiagem, ninguém se liga nesses detalhes.
Recentemente, o anúncio do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016 parou a cidade. Muita festa, concentração popular nas ruas e, claro, muita cerveja. Trabalho, nada. Mas o motivo era justo, obviamente.
Aqui no Pará, outubro é um mês destinado ao encostamento e a culpa é posta, veja só, nas costas de N. Sra. de Nazaré. Qual a razão de o dia do Recírio ser um meio feriado, que para muitas categorias vira um feriado inteiro? Há não muito tempo, uma pessoa, ofendidíssima, respondeu-me que as pessoas deveriam ter o direito de vivenciar a sua fé e que o evento ocorria apenas uma vez por ano. Ri por dentro da explicação cretina. Primeiro por ser evidente que a pessoa em questão só queria mais um dia de vagabundagem; segundo, porque uma rápida conferência do número de participantes do Recírio prova que não há necessidade da benesse. Do número e do perfil. O Recírio enche as celebrações de senhoras pias, mas não de jovens e do público em geral que esteve no Círio. Este público está, neste momento, dormindo, coçando o saco ou tomando cerveja.
Este ano, p. ex., a procissão do Recírio levou meia hora para percorrer 650 metros. Reuniu um número histórico: 50 mil pessoas. E aí? Precisava parar a cidade? Dava tempo de os fieis irem à procissão e depois ao trabalho.
Pior é que o dia seguinte ao Círio se converteu, nos últimos anos, em uma data ainda mais absurdamente enforcada. Este ano não conta, porque o dia seguinte foi 12 de outubro, que já é feriado nacional, instituído por lei (aliás, um feriado indevido, já que religioso, e um país laico não deveria possuir feriados religiosos, a menos que fossem ecumênicos). Mas nos últimos anos temos visto uma suspensão dos serviços públicos no pós-Círio. A mó di quê? Ressaca da maniçoba? Ou da cerveja que, claro, rola solta no almoço festivo. Quanto eu era criança, isso não acontecia, mas alguém inventou a moda e, para o mal, não faltam adeptos.
Naturalmente, neste caso também a causa é nobre. E ainda mais nobre do que as Olimpíadas do Rio. Gente mal intencionada estabelece uma vergonhosa relação entre preguiça e religiosidade, de modo que, no final das contas, o único errado serei eu. Alguém virá por aqui me acusar de desprezar a religião alheia. Bastaria um único neurônio para separar alhos de bugalhos, mas vagabundos não fazem tais raciocínios. O negócio é ganhar um dia a mais para arranhar o cremaster. Qualquer ano desses alguém criará a semana do Círio, para que cada vez menos dias sejam trabalhados. E todo mundo achará normal.
Menos aqueles que sabem contabilizar quanta riqueza o Brasil deixa de produzir em cada dia vagabundo.
3 comentários:
Caro Yudice, embora a afirmação de que esses feriados religiosos não deveriam existir no Brasil seja fundamentada numa interpretação possível do nosso ordenamento pretensamente laico, ouso discordar de você, com todo respeito que lhe devo, evidentemente.
A propósito do feriado de 12 de outubro, postei um texto no meu blog, o qual reproduzo aqui.
“No dia 12 de outubro, comemoram-se três datas, embora poucos se lembrem de todas elas: Nossa Senhora Aparecida, padroeira oficial do Brasil, o Dia das Crianças e o Descobrimento da América. Nosso feriado nacional, no entanto, deve-se somente à primeira data, e, embora a devoção à santa remonte aos idos do século XVIII, só foi decretado em 1980.”
(http://www.portaldafamilia.org.br/datas/criancas/diansra.shtml)
Num feriado emendado ao fim de semana, é comum (e saudável) a programação de curtas viagens, passeios e afins. Hoje, no entanto, resolvi refletir sobre o motivo do feriado do dia 12 de outubro, já apresentado no excerto acima.
Afinal de contas, sendo o Brasil um país constitucionalmente laico, ainda devemos comemorar, mediante feriados nacionais, dias dedicados a santos, imagens e/ou razões católicas?
Numa interpretação rápida e desapegada a resposta seria bem simples: não, o Brasil não pode dispor de uma data específica, com decretação mediante lei (no sentido amplo) de um feriado, para essa comemoração. Entretanto, a questão é mais complexa, levando em consideração dois fatores:
1) Tradição: o Brasil é um país de maioria católica (embora essa questão precise ser revista na atualidade), e a formação histórico-cultural do nosso povo é amplamente marcada pelos ditames do catolicismo, de modo que a tradição impele a sociedade a proclamar determinadas datas comemorativas que dizem respeito às religiões cristãs, e em especial ao catolicismo (p. ex. Natal, Dia dos Reis, Dia de Nossa Senhora de Aparecida);
2) Descanso: um feriado, além de representar especificamente a comemoração ou recordação de alguma data, significa genericamente um dia especial de descanso (ou liberdade) para o trabalhador brasileiro, seja ele católico ou não. É nessas datas que os ânimos se revigoram, quando o trabalhador pode programar um dia diferente, com direito a escolher o que fazer, sem a limitação da rotina semana-de-trabalho x fim-de-semana-de-descanso.
Penso, portanto, que a discussão deve ser encaminhada confrontando esses aspectos, pois nenhum deles deve ser desconsiderado no debate. A escolha de um ponto de vista deve passar obrigatoriamente pela análise desses argumentos.
No meu restrito entendimento, opto por compreender que o feriado do dia 12 de outubro, que já advém de uma tradição (oficial) de aproximadamente 30 anos, deve continuar, principalmente por representar uma data de descanso a mais para o trabalhador brasileiro, já castigado por uma rotina de trabalho maçante (mais pela má qualidade das condições de trabalho do que pela jornada em si). Quem não for católico pode encontrar outras razões, igualmente legítimas, para aproveitar a data. Aliás, o excerto acima apresenta pelo menos duas, de igual importância à comemoração pela padroeira: o dia das crianças e o “descobrimento” da América.
Um bom feriado a todos(as)!"
Tem um argumento em particular que me parece extremamente fraco: o de que o Brasil deixa de produzir muitas riquezas pela falta de um dia de trabalho. Pode até ser um argumento factível, comprovável mediante dados estatísticos, mas que pode ser confrontado igualmente por outro argumento: o de que o trabalhador merece descanso. E descansar não significa obrigatoriamente ficar em casa com a família, dormindo, assistindo TV ou seja lá o que for. É um dia destinado ao trabalhdor empenhar-se no que lhe for aprazível (desde que não cometa nenhum ato ilícito), e beber, queira ou não, não é crime ou assemelhado.
Abraços,
Arthur
Quem sabe, assim como uma sesta no início da tarde revigora para o trabalho do restante do dia, um dia de feriado não revigore para continuar o trabalho da vida? Nem digo da semana, pois bem sei que quando há feriado a semana inteira fica preguiçosa, mas o feriado tira as pesoas da rotina, e isso é saudável.
:*
Mais uma vez, Arthur, reforço que não precisas justificar a tua insurgência. Estamos aqui para debater.
Mantenho o meu ponto de vista.
No que afirmas sobre tradição, penso que esta só deve ser considerada enquanto esteja de acordo com os princípios consagrados na Constituição. Jamais defenderia o apego à lei, pura e simplesmente. Reporto-me aos valores mais amplos e profundos da sociedade. Dentre eles, estão a igualdade e a laicidade. Assim, como não podemos admitir a criação de feriados para cada religião, sob pena de acabar com o trabalho no país, a única forma de manter a isonomia seria não dispor de feriado religioso algum.
Aliás, meu pensamento é diametralmente oposto ao teu: o fato de o Brasil ser dominado pela mentalidade católica, desde as suas origens e até hoje, recomenda não que nos acomodemos, e sim que nos movimentemos para acabar com essa indevida supremacia.
Quanto ao descanso, parece-me um argumento frágil. Eu, como tudo mundo, gosto de dar uma pausa de vez em quando. Feriados são bem vindos, sob essa perspectiva. Mas o que está em jogo aqui é outra coisa: o motivo para se parar. Creio que não se criam feriados apenas para o ócio geral, por isso considerei frágil o argumento. Fosse assim, daríamos aos feriados fundamentação algo análoga à das férias e do repouso semanal remunerado. Não creio que seja o caso.
Ainda que fosse, então deveria haver feriados cívicos, pura e simplesmente. Em Belém, p. ex., o aniversário da cidade não é feriado, como na maioria das cidades. Deveria ser.
Logo, o que realmente precisamos é de uma política trabalhista humana e sensível à realidade de exploração do brasileiro.
É uma grande alegria debater em nível elevado, como me propicias. Um abraço.
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