domingo, 7 de novembro de 2010

Linchamentos no Pará

Aprendi num livro jurídico que a palavra linchamento se originou em uma pessoa: William Lynch (1742-1820), um militar americano que aplicava tal prática durante a guerra de independência dos Estados Unidos, por volta da década de 1780. E com a Língua Portuguesa aprendi que linchar significa matar por espancamento, de modo que só se pode falar em linchamento se a vítima morrer. Estas informações, hoje, estão disponíveis na Internet, para quem souber procurar ou topar com elas durante uma navegação qualquer.
O linchamento é um tema inquietante para mim, que sou naturalmente avesso à violência. A própria expressão "fazer justiça com as próprias mãos" me enoja. O que se faz com as próprias mãos destoa de qualquer concepção de justiça que minha racionalidade admita. Talvez esse sentimento seja influenciado pelo fato de, ainda criança, ter visto um homem morto, encostado a um poste perto de minha casa, após uma suposta tentativa de estupro. No dia seguinte, as manchas de sangue permaneciam lá. Seja como for, mesmo sem ter essa lembrança, nenhum caminho me teria levado a ser condescendente com tamanha brutalidade, mesmo sabendo que, a meu redor, uma quantidade extraordinária de pessoas, de absolutamente todos os matizes, apoia ostensivamente a barbárie. Com o incessante incremento da violência ao nosso redor, nos últimos anos, os linchamentos se tornaram mais comuns e ganharam mais defensores. E praticantes.
Por isso, achei relevante que o Diário do Pará de hoje abordasse esse assunto, conferindo-lhe o status de manchete principal. Infelizmente, a reportagem em si era superficial, embora deixasse entrever uma necessária reprovação. Apesar de ocupar duas páginas inteiras do primeiro caderno, limitava-se a descrever um caso ocorrido no Município de Curuçá há seis meses, que acabou ganhando o mundo virtual (hoje em dia qualquer um pode fotografar e filmar em formatos digitais) e chamou a atenção de imprensa policial local. Mencionou uma ou outra pessoa entrevistada, para demonstrar como as pessoas estão permissivas com a truculência. E apesar de ter citado a existência de estudos acadêmicos, não seguiu essa que seria uma abordagem preciosa, restringindo-se à menção de uns poucos dados estatísticos. A parte mais interessante da matéria era a lúcida manifestação do sociólogo Mário Brasil. Mas também gostei de ver um delegado de polícia, Silvio Maués, explicando como o linchamento põe em risco toda a sociedade.
Sintomático é que, ainda na capa, o jornalista incorra num erro habitual, ao afirmar que "Ausência da segurança pública e da Justiça movem cidadãos de bem a praticar cada vez mais barbáries". Para mim, num mundo cada vez mais cheio de ideias preconcebidas arraigadas no imaginário popular, e o mais das vezes ideias toscas, um dos fatores que leva pessoas até então pacatas a participar de atos de selvageria é essa compreensão de que, no linchamento, a vítima merece ser justiçada e que seus algozes são, na verdade, prejudicados que apenas reagem, ocupando espaços abandonados pelos poderes públicos. Facilita muito, no processo de rompimento dos limites de uma pessoa, acreditar que está do lado do bem. Se ela pensasse estar fazendo algo errado, não agiria; mas por acreditar que suas ações são legítimas, úteis e até necessárias, pega em armas. Não se vê como um criminoso, mas quase como um heroi. No mínimo, como um cidadão de bem defendendo os seus direitos.
Quando o linchamento é compreendido na perspectiva de uma solução final dos mocinhos contra os bandidos, não há como tornar claro aquilo que, na verdade, é óbvio: tudo é violência. E sob os mesmos argumentos com que pais de família trucidam ladrões, skinheads trucidam gays e negros e se legitimam organizações como a Ku Klux Klan, que existe até hoje. Não há diferença.
Não sei se o jornalista foi apenas ingênuo ou se, pior, acredita mesmo nessa perigosíssima premissa. Então coloquemos as coisas em termos: um verdadeiro cidadão de bem jamais cometeria um linchamento. Não arredarei pé desta afirmação.
Mas vou concordar que os sentimentos de necessidade, nas pessoas, funcionam como a água: ocupam qualquer espaço que apareça e tomam a forma do recipiente que as contém. Se o poder público abre uma brecha, ela será ocupada.

3 comentários:

Ana Miranda disse...

Isso me assusta muito, Yúdice, Fico imaginando o que se passa na cabeça das pessoas quando assumem tal atitude.
Será que sentem vergonha depois??? Têm arrependimento???
Como fica a vida de um cidadão comum após terrível, temível e assustador ato???
Tenho medo, muito medo...

Yúdice Andrade disse...

Sem dúvida que muitos, movidos pelo calor do momento, dão-se conta tardiamente do que fizeram e se sentem mal com isso. Mas acredito que a maioria das pessoas já está tão brutalizada que não consegue chegar a essa constatação. Ao contrário, devem manter a convicção de que agiram corretamente. Aí mesmo é que precisamos sentir medo.

Jean Pablo disse...

Isso é uma prática antiga, que sabes, melhor do que eu, que faz parte de um "ritual espetaculoso" no qual o linchador, tem a oportunidade de se sentir melhor que alguém. O Sentimento de Justiça ali pasa longe. É o caráter de "heroísmo" de quem faz. Claro, ao se sentir herói, o cidadão eleva-se em relação aos demais. É a busca pelo poder.

Grande Abraço Primo