quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ele, o médico condenado

A maior autoridade brasileira em reprodução assistida, o médico Roger Abdelmassih (66), pouco mais de um ano após a eclosão da ação penal, foi condenado ontem pela 16ª Vara Criminal de São Paulo. A acusação: 391 estupros, entre tentados e consumados, contra pacientes de sua clínica, cometidos de 1995 a 2008. A pena: 278 anos de reclusão.
Como sempre acontece nestas horas, preciso lembrar que a regra segundo a qual a pena fica limitada a 30 anos aplica-se tão somente à fase de execução, ou seja, a pena pode ser imposta em qualquer montante mas, uma vez iniciada, ficará limitada a 30 anos. Portanto, nada a ver a alegação atribuída ao advogado de defesa, de que a sentença poderia ser "anulada" por causa da pena imposta. A condenação não é irregular somente por ser centenária.
No sítio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o caso está noticiado com destaque e há, inclusive, um link para a íntegra da decisão, um alentado documento de 194 páginas que, por versar sobre diversos temas dos direitos penal e processual penal, vale uma análise detida dos estudiosos dessas áreas. Aliás, a juíza prolatora da sentença, ciente da ampla publicidade que terá, aproveitou para produzir uma daquelas peças que enveredam pelo mundo da cultura geral e das artes, notadamente na curiosa passagem em que disserta sobre o significado social do beijo, se constitui ou não um ato libidinoso, chegando a citar diversas obras cinematográficas que o enfatizaram e até a transcrever um trecho um do poema "Beijo Flor", de Carlos Drummond de Andrade2.
Outra passagem, em que a magistrada abdica da poesia para volver ao mundo do Direito, analisa a proporcionalidade da pena. A juíza se diz contrária às propostas de mudanças legislativas para aumentar as penas dos crimes e considera "hiperinflacionadas" aquelas cominadas aos delitos patrimoniais ("Os bens materiais são supervalorizados, em detrimento da pessoa e de seus atributos").
Gostei, por seu caráter de humanidade, do excerto em que a sentença analisa os motivos que levaram as mulheres a denunciar a violência sofrida, algumas após alguns anos.
A tese defensória de Abdelmassih sempre foi a negativa de autoria. Ao ser interrogado, segundo a sentença, ele tentou explicar as acusações sofridas assim: "Talvez seja pela insatisfação delas, talvez por alguma influência de mídia, insatisfação da própria negativa do resultado... e tem outras tantas situações que eu poderia aqui querer sugerir como possibilidades, que eu não posso saber porque essas outras queixas foram efetuadas". Disse tratar as pacientes por "querida" e cumprimentá-las com abraços e beijos no rosto, às vezes segurando o rosto, como é costume entre os árabes, não sabendo se seu gesto foi mal interpretado. Parece que se cogitou, inclusive, de algum tipo de delírio provocado pelos medicamentos. Estranho é que todas as queixosas tenham vivenciado delírios no mesmo sentido. Por isso, diz a magistrada que "os relatos das vítimas muito se assemelham e não se trata de coincidência."
A sentença recusou-se a fixar reparação dos danos civis decorrentes dos crimes, por entender inconstitucional a norma que a instituiu, na medida em que cerceia o direito de defesa do réu, impossibilitado de exercer o contraditório e de formular pedidos alternativos. Além disso, mesmo que se admitisse a norma como constitucional, a lei que a criou é posterior à denúncia, da qual não consta nenhum pedido indenizatório, também não formulado pelos assistentes de acusação, quando de seu ingresso à lide. Cuida de privilegiar o princípio da anterioridade da lei.
No que tange ao aspecto talvez mais polêmico da sentença — a dosimetria —, a juíza decepcionou. Sem fundamentar o cálculo, simplesmente atribuiu a pena mínima para todos os delitos e somou as penas de cada qual. Há quem afirme que penas impostas no grau mínimo não exigem fundamentação, mas a melhor doutrina que a acusação também tem o direito de conhecer as razões de decidir, caso queira recorrer. E um detalhe: decidiu que os delitos não são hediondos, porque não resultaram em lesão corporal grave ou morte.

1 Inicialmente, falou-se em 56 vítimas, mas a sentença só considerou 39.
2 "O beijo é flor no canteiro/ ou desejo na boca?/ Tanto beijo nascendo e colhido/ na calma do jardim/ nenhum beijo beijado/ (como beijar o beijo?)/ na boca das meninas/ e é lá que eles estão suspensos/ invisíveis".

Postagens anteriores sobre o tema:

2 comentários:

Ana Miranda disse...

O que é pior nesse crime, se é que algo pode ser pior do que estupro em si, é o vínculo de confiança que havia das mulheres a quem o filhote de ronquenfunça tratava, com ele.
Elas não só confiavam nele, como o viam como o "salvador", pois ele iria realizar o sonho delas de ser mãe.
Ele mereceu cada ano de cadeia que ganhou. FDP.

Yúdice Andrade disse...

Sempre falo a meus alunos sobre o "colorido do crime", ou seja, suas características específicas. A coisa, por mais horrenda que seja, sempre pode assumir contornos particulares, que agridem mais ou menos as emoções, conforme o observador.