quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Deu sujeira

Finalmente surgiu um assunto capaz de dividir espaço na mídia com a operação de guerra no Rio de Janeiro. O concorrente na atenção do público é... o segredo de Gerson Gouveia, da novela Passione.
Como leciono à noite, faz anos que não acompanho novela alguma, embora já tenha declarado em mais de uma ocasião, aqui no blog, minhas inclinações novelísticas e minha antipatia às pessoas que dizem detestar novelas para fingir sofisticação. O fato é que não acompanho a novela e não tenho nenhuma opinião a seu respeito, mas o tema do debate me chama a atenção.
As sessões de Gerson com seu psiquiatra já haviam rendido uma primeira controvérsia: Flávio Gikovate é psiquiatra de verdade1 e foi acusado de conduta antiética por praticar psicoterapia pela TV. Até onde sei, a acusação não deu em nada.
O problema é que, desde a estreia de sua novela, Silvio de Abreu — em seu clichê de criar mistérios supostamente capazes de mobilizar a opinião pública nacional — investiu num segredo para o personagem de Marcello Antony, um segredo terrível, que a imprensa proclamou tratar-se de pedofilia.
A hipótese parecia plausível, mormente quando a esposa do rapaz o flagrou diante do computador e armou o maior escândalo, chamou-o de monstro e até se separou dele, dando a entender que vira na tela coisas inenarráveis. Daí por diante, as chamadas da novela estimulavam a curiosidade do público, o que pode tornar-se um tiro pela culatra e, no caso, parece ter virado. Estou certo de que Abreu, obcecado pela necessidade de surpreender o público, desistiu de seus planos originais e, para engendrar algo que não tivesse passado pela cabeça de ninguém, que não houvesse sido antecipado pela imprensa, transformou o grande segredo numa ridícula tara por sexo sujo.
Digo ridícula porque, embora seja um problema relevante — na medida em que traz infelicidade para Gerson e prejudica (ou pelo menos já prejudicou) concretamente a sua vida —, está infinitamente aquém do esperado pelos telespectadores e o autor, no afã de poupar o personagem do desprezo de um público preconceituoso, minimizou ao máximo a coisa: Gerson gosta, mas não pratica; procura, mas não consuma. E deixou absolutamente claro que jamais teve interesses homossexuais. Frangamente! Precisava tanta hipocrisia?
Fosse eu, teria pensado, no mínimo, em sadomasoquismo com homens e mulheres, gente pagando caro para provocar e sentir dor em porões temáticos, frequentados pela alta sociedade, um negócio bem hardcore, e não nesse escândalo à novela brasileira, pasteurizado o quanto possível. Não à toa, o tal segredo virou um dos assuntos do momento porque todo mundo ficou irritado com a revelação. No máximo, propiciou um questionamento: afinal, há algo de errado nesse tipo de fantasia sexual?
Em conversas com psicólogos, aprendi que não se pode rotular os comportamentos de "normais" e "anormais" pura e simplesmente, mas isso até o mala do Caetano Veloso já sabia2. O conceito de "normalidade" é rejeitado pelos profissionais e, face à necessidade de lhe dar algum sentido, passou a ser entendido como comportamento que não causa prejuízos ao próprio indivíduo ou a terceiros. Assim, se Gerson consome pornografia suja e ninguém se machuca com isso, física ou emocionalmente, sua conduta deve ser encarada como normal, mera expressão de seus gostos pessoais. Mas na medida em que ele mesmo sofre e se culpa por causa dessas tendências, então existe mesmo um problema, que precisa ser tratado.
O problema, portanto, está na mania das pessoas de meter o dedo na cara dos outros e lhes impor a velha moralidade, que muitas vezes o dono do dedo não possui. Saiu ligeiramente do figurino, é vagabunda, puta, desgraçada; é marginal, maconheiro, bicha. E às vezes a pessoa está só vivendo a sua vida.
Um detalhe interessante: este texto foi escrito por um sujeito usualmente classificado como careta, enquadrado, tradicional e chato. Careta e chato, provavelmente. Mas moralista, infinitamente menos do que antes.

1 Gikovate é médico psiquiatra formado pela Universidade de São Paulo em 1966. Lançou seu primeiro livro em 1975 e dois anos depois começou a escrever artigos para revistas, tornando-se depois colunista do jornal Folha de S. Paulo. Atualmente, apresenta o programa "No divã do Gikovate" no canal CBN. Já tem 30 livros publicados. As informações são de sua página pessoal.
2 Refiro-me ao verso "de perto ninguém é normal", da canção "Vaca profana", de que gosto muito.

8 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, pro escândalo dos WikiLeaks e pra iminente guerra entre as Coreias ninguém deu a menor atenção, assim como, antes, para os mineiros da Nova Zelândia.

Yúdice Andrade disse...

Tenho visto todos os dias notícias novas sobre o caso WikiLeaks. Fico com a impressão de que as teorias conspiratórias de filmes e seriados se tornaram mais plausíveis. Mas entrando no espírito da crítica, teria sido mais fácil mencionar esses assuntos na novela. Assim eles seriam percebidos.

Anônimo disse...

Sim, com depoimentos no estilo Manoel Carlos: "Eu era diplomata de um país que eu prefiro não revelar o nome. Eu era bem sucedido, passava uma imagem de respeitabilidade, mas falva mal dos líderes pelas costas deles e aproveitava toda chance que tivesse para espioná-los e prejudicá-los em favor do meu país. Mas naquela época eu achava que eu estava imune, que nunca ninguém descobriria, que nunca provariam nada contra mim. Mas aí, no final de 2010, veio o WikiLeaks e ali a minha vida desmoronou...", rsrs.

Ana Miranda disse...

Yúdice, eu realmente não suporto novelas. Não as assisito há mais de 20 anos.
Sou ansiosa demais para ficar 8 meses acompanahndo a mesma história...
Não dá. Não tenho paciência e não acho as histórias interessantes.

Luiza Montenegro Duarte disse...

Não se iluda, professor. Sim, a Globo é afeita à "moral e aos bons costumes", mas gosta mais ainda de dinheiro: há alguns meses, li uma reportagem que antevia essa situação ridícula: A Goodeyer, gigante dos pneus, era patrocinadora do personagem no início da novela, quando ele era um campeão de algum esporte automobilístico. Quando começou a se especular a pedofilia e outras coisas graves, a empresa colocou a emissora contra a parede, afinal, não podia associar sua marca a um criminoso. Então, para não perder o merchandising e ainda correr o risco de uma ação de indenização, a Globo garantiu que o que o rapaz via no computador não seria nada grave e que, no final, ele sairia como um "mocinho", aos olhos do público.

Anônimo disse...

Yúdice, se cada pessoa que gostasse de sexo sujo procurasse um Psiquiatra achando que é defeito, até eu iria fazer Psiquiatria. Ficaria rico! ká-ká-ká

Alexandre

caio disse...

O único suspense que me prendeu em novela foi de quem explodiu o shopping em Torre de Babel (acho que também era o Sílvio de Abreu). Eu tinha 9 anos.

Demorou outros cinco para que criassem outro: "quem matou Lineu?", desenvolvido pelo Gilberto Braga. Eu não tava dando bola e me irritava com as chamadas. Até o Casseta e Planeta promovia. Pois bem, caí no papo e fui assistir o capítulo... pra ver que o assassino era justamente a vilã da trama (personagem da Cláudia Abreu), quando esperava-se toda uma reviravolta.

A partir dali, me preveni para essas coisas. Por amigos eu soube que o mesmo Braga usou novamente o maior vilão (agora o Wagner Moura) como assassino no "quem matou.... ?"

Podiam ler Conan Doyle ou Agatha Christie...

Unknown disse...

Opa! Quem será esse anônimo!? hehehe.
O que eu já tive de ouvir por causa desse segredo...
Tenho umas tias que acham parecido com esse ator aí. Daí, para os primos pegarem no pé...

Agora que eu entendi o pq. Perguntei agora a pouco no facebook: "qual é o segredo desse tal de Gerson!?". Agora eu sei. E isso não mudou minha vida!

Como falaram, tanta coisa mais importante!