Sobre as primeiras voltarei a escrever, mas o sentimento a que me refiro diz respeito ao modo como os juristas lidam com a missão de publicar trabalhos científicos. Alguém disse aos juristas, há mais de um século, que eles deveriam escrever tratados. E eles acreditaram. Alguns dos maiores nomes das letras jurídicas produziram caudalosas obras e, em alguns casos, versando sobre distintas áreas do Direito. O tempo passou, os conhecimentos se especializaram e as influências de várias outras áreas do conhecimento não permitem mais o surgimento de um novo Pontes de Miranda. Ou, pelo menos, tornariam bastante duvidosas as credenciais de quem pretendesse galgar uma tal posição.
Discussões que poderiam ser consideradas seminais ao Direito hoje não podem ser feitas prescindindo de novas e complexas informações multidisciplinares. No caso do Direito Penal, p. ex., a diferenciação entre dolo e culpa não pode ignorar os avanços tecnológicos, notadamente na Medicina. Nelson Hungria não pensou em cirurgias realizadas remotamente, com um cirurgião num continente e um paciente e robôs em outro. Não pensou, também, em diagnóstico de moléstias fetais e correção das mesmas ainda no útero materno. Ao mesmo tempo, os referenciais éticos mudaram e afetaram temas espinhosos, tais como o consentimento da suposta vítima. Antes, a incolumidade pessoal era considerada como bem jurídico absolutamente indisponível. Com o tempo, isso mudou. Em 1995, a Lei n. 9.099 determinou que a ação penal, nos casos de lesão corporal leve ou culposa, que era pública incondicionada, passasse a ser condicionada à representação do ofendido (art. 88). Hoje, já há quem afirme a disponibilidade do corpo para reconhecer como atípicas, p. ex., violências cometidas em relações sexuais sadomasoquistas. Outro exemplo são as transformações corporais extremas, como se pode ver nas imagens do Homem-Tigre e do Homem-Lagarto, acima.
De tudo isso resulta que precisamos incentivar ao máximo a produção científica no mundo do Direito, mas sob uma nova roupagem, menos arrogante e autista. Em vez das grandes obras tentando versar sobre tudo em alguma área, obras coletivas produzidas por cérebros cada vez mais especializados. Nesse ponto, elogio a iniciativa da Coleção Ciências Criminais, publicada pela editora Revista dos Tribunais, que tem como organizadores Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, mas que varia de autores a cada volume. Os dedicados à Introdução ao Direito Penal e à Criminologia, por sinal, são excelentes.Precisamos superar a mania tosca de encarar artigos como produções menos valiosas, como se somente livros tivessem valor e, mesmo assim, apenas quando produções individuais. No Brasil, artigos jurídicos são publicados em sites interessantes e úteis, mas cujos critérios de publicação são incipientes, o que os torna frágeis para fundamentar trabalhos científicos (são justamente esses documentos que infernizam a vida dos orientadores de TC, pois os alunos atuais vão direto à Internet, antes de procurar livros); ou então em revistas especializadas, muito bem intencionadas, mas nem de longe com o prestígio de uma Nature (ciências naturais) ou de uma IEEE (tecnologia). Nestas áreas, por sinal, muitas instituições acadêmicas promovem uma política de publique-ou-morra. Conseguir que uma revista desse nível publique um trabalho não é nada simples. E conseguir o feito é muito bom para o currículo.
Por fim, se quisermos por o dedo na ferida, também podemos dizer que alguns livros supostamente individuais são, na verdade, o produto do engenho de várias cabeças, que pesquisam, fundamentam, escrevem, mas cedem todos os créditos ao dono do projeto — cujo nome fulgurará na capa. No máximo, haverá alguns agradecimentos, mas não o reconhecimento público de coautoria.
Publicar artigos científicos de alta qualidade no Direito, no Brasil. Este é um paradigma a ser mudado, com todos os ares de desafio.
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