sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Comentando a notícia: O beijoqueiro esquizofrênico

A Justiça do Distrito Federal absolveu um homem de 29 anos acusado de tentar roubar um beijo de uma moça dentro de uma van de transporte coletivo. Na sentença, o juiz critica o andamento da ação, que movimentou pelo menos 43 servidores do Judiciário nos dois anos e oito meses de tramitação do caso.
O juiz substituto da 1ª Vara de Entorpecentes e Contravenções Penais do DF, Fabio Martins de Lima, diz em sua sentença que "a moçoila ofendida foi surpreendida pelo inopinado beijoqueiro, que, não resistindo aos encantos da donzela, direcionou-lhe a beiçola, tendo como objetivo certo a face alva da passageira que se encontrava ao lado". O caso ocorreu em fevereiro de 2006, em Brazlândia, cidade-satélite de Brasília. O rapaz que tentou dar o beijo na moça não conseguiu seu prêmio e, além de apanhar dela, ainda acabou sendo processado.

Incomodado com o caso, o juiz parece ter decidido romanceá-lo, redigindo uma sentença num estilo pseudoliterário. Pior é que Fausto Carneiro, autor da reportagem, pelo visto gostou e fez a mesma coisa.
Ele foi acusado com base no artigo 61 da Lei de Contravenções Penais (importunação ofensiva ao pudor em local público). O crime é punível com multa, que pode ser convertida em prisão de 15 dias a três meses ou tratamento ambulatorial.

O jornalista não entende nada de Direito ou, no mínimo, não se preocupou com a revisão de seu texto. Se a importunação ofensiva ao pudor é prevista na Lei de Contravenções Penais, é óbvio que não se trata de crime. Crime e contravenção são conceitos distintos e o jornalista deveria saber disso, já que escreveu a respeito. Quem informa não se informa.

Durante o processo, ele foi considerado pela Justiça como semi-imputável (incapaz de responder completamente por seus atos) por sofrer de esquizofrenia.

A semi-imputabilidade foi tema de uma aula minha ontem. Eis aí um exemplo. Mas isso indica que, num caso de somenos importância, até exames de sanidade mental foram realizados, mobilizando esforços que poderiam ser destinados a causas mais relevantes.

A moça que entrou com a ação, descrita pelo juiz como "uma mulher forte e robusta", disse que “esgoelou” e bateu no beijoqueiro para livrar-se dele. Segundo o Tribunal de Justiça do DF, uma das testemunhas do caso disse que ela não permitiu o beijo. "Ela reagiu e deu muita porrada no sujeito", contou a testemunha ao juiz, em audiência preliminar.

Outro tema de minhas aulas recentes: legítima defesa. Em tese, caberia agredir em legítima defesa do próprio pudor. Contudo, a reação da moça foi desproporcional ao suposto ataque. Uma coisa é esbofetear o molestador; outra é "dar muita porrada", como disse a testemunha. No final, só quem foi processado foi o autor da conduta menor.

Ao final da audiência, o juiz perguntou à vítima se o rapaz que tentou dar-lhe um beijinho era bonito. “Doutor, se ele fosse o Reynaldo Gianecchini, a reação teria sido outra", respondeu a moça.

Ou seja, a moça na verdade não defendia o seu pudor, ofendido por um estranho. Caso fosse alguém dentro dos seus parâmetros de beleza, o atrevimento estaria liberado? Não gosto de julgar a moralidade sexual de ninguém, mas não vi com bons olhos essa declaração.Justiça para quem precisa
Apesar de o caso ser pitoresco, o juiz criticou o uso da máquina do Judiciário para tratar de questão sem relevância. Lima chega a enumerar na sentença os funcionários do Judiciário que em algum momento tiveram contato com o processo: dez juízes, oito promotores, cinco procuradores de Justiça, nove defensores públicos, oito médicos e três delegados.
"Impossível aferir com exatidão as dezenas de profissionais chamados a intervir no presente processo. No entanto, tal estimativa serve para evidenciar o tamanho do disparate em direcionar toda essa estrutura para apurar a prática de uma bicota [‘beijinho’], aliás, uma tentativa de bicota, levada a efeito pelo infeliz acusado", diz o juiz em sua sentença. Antes de a ação chegar a julgamento, um membro do Ministério Público do DF chegou a pedir que o processo não tramitasse, ao perceber "o quão esdrúxula" era a acusação.


Muito feliz o magistrado em denunciar a irrelevância da causa. Contudo, ele poderia ter sido mais audacioso e, declarando a ausência de ofensividade da conduta, matar a ação penal em seu nascedouro. Contudo, como isso seria decidir contra legem, raros são os juízes que tomam decisões desse nível. A maioria acaba contribuindo para o entupimento do Judiciário e bota a culpa nos outros. Mas por que não fez o que estava em seu poder?

Ainda assim, acabou remetido ao procurador de Justiça, que designou uma comissão com três promotores para analisar o caso. A comissão resolveu dar andamento à ação. Com sarcasmo, o juiz diz que "os três expertos" decidiram, "após rebuscada pesquisa", que "não era possível o arquivamento com base no princípio da insignificância".

Comissão de três promotores de justiça para resolver se o caso era insignificante ou não? Fala sério! Neste país, tempo, esforços e dinheiro acabam sendo empregados no que não interessa. Gostaria de saber se o Ministério Público do Distrito Federal constitui essas comissões para assuntos realmente úteis. Além do mais, por que uma comissão? O órgão ministerial tem autonomia para agir, não tem?

Na sentença, o juiz diz ainda que faz “votos de que não surja um ‘iluminado’ com a ‘estupenda’ idéia de, por meio de recurso, prorrogar a presente discussão e sangria de recursos públicos financeiros e humanos”. Segundo ele, “gastos inúteis não se justificam em parte alguma".

O que me leva a repetir: então por que S. Exa. não impediu tudo isso? Poderia e deveria tê-lo feito.

Tratamento ambulatorialLima lembra em sua sentença que decidiu não recomendar o tratamento ambulatorial para o rapaz porque não via benefícios que a medida poderia trazer para a família da vítima, como alegava a acusação.
O juiz lembra em seu despacho
(de novo o jornalista desinformado: foi uma sentença, não um despacho) um caso ocorrido em 1967, de um homem que foi inocentado em um processo em que era acusado de lesões corporais, mas que foi enviado para tratamento ambulatorial. Segundo o juiz, ele passou 36 anos em presídios e manicômios até ser libertado.

Sem dúvida, contudo, que se trata de um juiz humano, preocupado com os impactos desastrosos de uma decisão judicial. Nesse aspecto, ele merece elogios porque, por incrível que pareça, essa também é uma postura rara.

Reportagem disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL881494-5598,00.html.

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