quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A teoria, a prática e o que ninguém entende

Um promotor de justiça estadual, por esta sua condição, goza da prerrogativa de foro, vantagem concedida não ao indivíduo, mas ao cargo, que lhe garante não ser submetido a julgamentos criminais pelos juízes de primeiro grau de jurisdição, o que inclui o tribunal do júri. Se acusados de algum delito, são julgados originariamente pelo Tribunal de Justiça do Estado. Em alguns Estados, como São Paulo, os tribunais são tão numerosos (ali, mais de 300 desembargadores) que a reunião de todos o chamado Tribunal Pleno se torna inviável. Por isso, são criados órgãos fracionários, que assumem parte das competências do Pleno, dentre eles o Órgão Especial.
Isto esclarecido, vamos ao mérito.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em sessão realizada ontem, absolveu o promotor de justiça Thales Ferri Schoedl (figura já comentada aqui no blog) das acusações de homicídio qualificado e uma tentativa do mesmo delito. Para tanto, acolheram a tese defensória de que, ao disparar nada menos do que 14 tiros contra os rapazes que teriam molestado verbalmente sua namorada, Schoedl teria agido em legítima defesa. O pobrezinho se sentiu acuado pelos homenzarrões que o cercavam (um dos quais, segundo consta, teria até pedido desculpas a ele pelo comportamento inadequado). E para que não paire nenhuma dúvida sobre essa legítima defesa, o veredito foi dado à unanimidade: 23 votos.
Naturalmente, sem conhecer os autos, não posso fazer uma análise detalhada do caso. Contudo, antes do caso em si existem a norma legal que só admite legítima defesa quando o agente use moderadamente meios necessários e o bom senso, que nos permite tomar decisões para viver em sociedade. Se o próprio acusado disse ter disparado para o chão, a fim de afugentar os dois rapazes, qual a razão de prosseguir disparando até se chegar a um total de 14 tiros? Como justificar essa proporcionalidade, em plena via pública, considerando que os rapazes não o ameaçaram fisicamente e que a vítima sobrevivente levou três tiros? Por que três tiros? Um não bastaria, fosse o caso?
Diga-se, ainda mais, que o agente, por sua condição de promotor de justiça, além do conhecimento específico de que dispõe, que lhe permite julgar com acuidade superior à do cidadão comum as situações de repercussão criminal, tem ainda o dever de dar o exemplo, fazendo de sua vida pública e privada a expressão da dignidade desse cargo. Nada disso foi respeitado. Mas colou.
Ontem à noite, na minha sala de aula, eu falava sobre legítima defesa. De repente, sinto-me meio idiota, como se tivesse enganado meus alunos. Peço a eles que entendam: eu também sou vítima das fraudes que a Justiça volta e meia perpetra contra nossos supostos conhecimentos jurídicos. Lecionei de boa fé, mas não posso dar conta da vida real, aqui fora.
Pelo menos, o caso em apreço ajuda a provar que eu falava a verdade na primeira semana de nossas aulas: crime, neste país, depende de quem o pratica. Será que algum dos meus pupilos ainda duvida?

7 comentários:

Anônimo disse...

Infelizmente é assim amado mestre do vernáculo jurídico. O crime e sua pena vária de acordo com as pessoas e sua posição social e econômica. É assim agora, foi assim no passado e será assim no futuro afinal a deusa grega que simboliza a justiça possui uma venda justamente para usá-la em casos como o que te referes. Se o acusado fosse o Zé povinho estaria condenado e punido a passar o resto da vida em nossas penitenciarias degradantes e mal cheirosas. Como já dizia o poeta a “JUSTIÇA É CEGA MAIS ENCHERGA, JÁ ESTA NA HORA DE ASSUMIR”.
Abraço.
O JUSTICEIRO.

Frederico Guerreiro disse...

Yúdice, meu sempre mestre Yúdice, eu não tenho dúvidas de que acredito mais em você do que naqueles desembargadores de São Paulo.
Obrigado!

Yúdice Andrade disse...

"Amado mestre do vernáculo jurídico" é engraçadíssimo, Justiceiro. Grato pela manifestação de concordância.

barbarela disse...

Caro professor, seus textos são fascinantes! Não faço o curso de direito, porém nunca deixo de visitar seu blog!
Parabéns!

Anônimo disse...

Olha eu aqui outra vez...

Soube, neste instante, dessa decisão... Embora viciada na rede, somente hj.

Essa é uma daquelas decisões que me violentam, deixando aquela dúvida que, vez por outra, atormenta: o que faço nesse mundo jurídico?

Às vezes penso que vive melhor quem vive nas trevas... Quando se adquire um conhecimento mediano, quando se pensa muito, o sofrimento é maior.

É isso. Apenas um desabafo.

Francisco Rocha Junior disse...

Yúdice,

Não vou fazer juízo de valor sobre a responsabilidade ou não do promotor; não sei das circunstâncias do caso e o que levou os desembargadores do TJ/SP a absolverem-no.
Uma coisa, porém, creio ser certa: é fácil demais defender quem a imprensa elege como vítima. A mídia, neste caso, tomou claro partido contra o promotor Thales Shoedl, antes que ele pudesse exercer o seu direito de defesa.

Na intenção de colaborar com o debate, sugiro a leitura destes dois artigos do Observatório da Imprensa sobre o caso: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=452CID002 e http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=453CID002.

Yúdice Andrade disse...

Obrigado, Fred, mesmo sendo um pouco forte escutar (ler) isso.

Barbarela, fico imensamente grato pela atenção e muito feliz, já que pude despertar o interesse de alguém fora do mundinho em que normalmente transito e para o qual escrevo o mais das vezes. Volte sempre.

De fato, Rita, por vezes a ignorância é uma bênção. E pensar que fui eu que te falei sobre o conceito e os limites da legítima defesa...

Caro Francisco, grato por fazer o papel de advogado do diabo. Sabes, com certeza, que sou crítico da imprensa sensacionalista que mais corrompe do que educa. Há diversas postagens aqui no blog desse teor e jamais tive ou terei a intenção de enveredar pelo mesmo caminho.
Li as duas matérias que indicaste e as considero relevantes para o debate, sem dúvida. Contudo, sou forçado a fazer aquela perguntinha triste de sempre: que interesse terão os autores das matérias? Porque hoje tenho dificuldade em aceitar a idéia de matéria isenta. Desconfio até quando o jornal me diz as horas.
Os argumentos ali esposados estão ligados a alguns dos postulados mais relevantes de nossa Constituição, que vêm a ser, justamente, os postulados lembrados - pela imprensa e pelas autoridades - quando o réu é um Daniel Dantas ou um Thales Schoedl e somente nesses casos. É curioso observar como, nessas horas, sempre aparece um jornalista crítico da própria imprensa e das reportagens que pré-julgam, que ofendem e condenam. É ainda mais curioso como eles desaparecem na maior parte do tempo.
Justifico o meu ponto de vista estritamente devido ao conceito de legítima defesa construído pelo Direito Penal, que apresentei a três turmas minhas nas últimas duas semanas e que vejo desmoronar no caso Schoedl. Com efeito, se a versão que ele conta e que a primeira reportagem reproduz for verdadeira, teríamos em tese uma legítima defesa. Mas no vai e vem das informações, acredito que a história não é bem essa. E ele tem todo o cabedal necessário para construir uma versão conveniente. Enfim, não acredito na versão dele e por isso quatorze tiros disparados me parecem uma insanidade. Mesmo que ele estivesse originalmente em legítima defesa, haveria excesso posterior e, portanto, ele deveria ser condenado por homicídio. Mas a Justiça foi branda com ele, como sempre ocorre nesses casos. Quanto a este aspecto, mantenho minha irresignação e minha crítica.
Disposto para mais debater. Abraços.