quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Apego à realeza

Em 21.4.1993, o povo brasileiro compareceu às urnas para participar de um plebiscito, previsto na Constituição de 1988, acerca da forma e do sistema de governo que deveria vigorar no país. No que tange à forma de governo, disputavam a República e a Monarquia. Ao final de todo o processo, a Monarquia recebeu 6.840.551 votos, ou 7,5% do total. Os Estados onde obteve maior votação foram São Paulo e Rio de Janeiro (11,1% e 10,8%, respectivamente) e o maior repúdio se deu no Maranhão e no Piauí (2,6% e 2,4%, respectivamente).
Esses números não me surpreendem. São Paulo e Rio de Janeiro se consideram a elite do país. Nada mais natural que se sintam propensos à realeza, ainda mais no Rio, que foi sede do governo monárquico e guarda inúmeros traços do período. Do outro lado, os dois Estados de pior índice de desenvolvimento humano do Brasil certamente estavam preocupados demais em adquirir condições de subsistência, não podendo perder tempo com uma turma querendo restaurar um modelo de privilégios de sangue.
A despeito disso, o brasileiro adora esses papos de realeza. Já escrevi sobre isto antes, aqui no blog. Sempre tivemos reis para tudo, principalmente para coisas inúteis. E colocamos no posto uns porcarias que não servem nem para nos informar as horas, mas que mesmo assim são idolatrados. Atualmente, com a disseminação do culto às celebridades, o problemas se acentuou gravemente, porque qualquer mulher fruta pode virar a Rainha da Feira.
Difícil reduzir isso a uma simples mediocridade de caráter. O problema é mais embaixo.
O Brasil não é oficialmente dividido em castas, como a Índia. Mas se comporta como se fosse. Aqui, um sobrenome sempre valeu mais do que o mérito. O saldo bancário, mais do que ser um indivíduo verdadeiramente produtivo. Agora, a fama vale mais do que a ausência de motivos para obtê-la. Esses clichês se refletem em diversos setores da vida cotidiana.
Veja-se, p. ex., que a história deste país sempre foi marcada pela chamada cultura bacharelesca. Você precisava ser bacharel em alguma coisa para ser socialmente bem posto. E como no princípio quase só havia faculdades de Direito, bacharel e jurista eram termos muitas vezes confundidos. É curioso como até hoje documentos exarados pela Polícia Civil se referem ao delegado como "o Bel." fulano de tal. Documentos judiciários idem. Mas apenas o título de bacharel era valorizado: a pós-graduação despontou há muito menos tempo na rotina das profissões, provavelmente impulsionada mais pela concorrência do que pelo reconhecimento do valor da formação acadêmica.
Em suma, ser advogado era algo meritório. Após a reorganização do Poder Judiciário e do Ministério Público trazida pela Constituição de 1988, contudo, a conjuntura mudou. Ao invés de todas as carreiras jurídicas crescerem, aquelas assentadas em bem remuneradas funções públicas passaram a ser o objetivo das sempre crescentes legiões de brasileiros que se matriculam nos cursos jurídicos que pululam por aí. A quase totalidade dessa demanda está de olho nos concursos públicos, pelos altos salários, pela estabilidade e pelos privilégios mais ou menos abusivos que esses cargos proporcionam. É cada vez menor o número de acadêmicos de Direito interessados em ser advogados e cada vez maior o número dos que consideram os três anos obrigatórios de advocacia, exigência de alguns dos mais importantes editais, apenas um mal necessário. Isto compromete não apenas a dignidade da profissão, mas a inserção social dos seus integrantes. Se não forem ricos e bem sucedidos, podem ser vistos pelas lentes preconceituosas da sociedade como fracassados, porque são somente advogados.
Hoje, já é possível escutar perguntas cretinas como "Ele é alguma coisa ou só advogado?". O "alguma coisa" é um juiz, p. ex. Ser advogado é uma espécie de prêmio de consolação.
E nós, professores, que reclamávamos quando algum leso nos perguntava se nós trabalhávamos também ou se apenas dávamos aula...
O mundo está piorando a cada dia, pelo visto.

4 comentários:

Luiza Montenegro Duarte disse...

Putz, achar que dar aula não é trabalho é realmente o fim da picada. Quanto a advocacia, isso é reflexo do total descrédito da nossa profissão na sociedade, para o que o judiciário contribui.No início o cliente até entende que o judiciário é demorado, mas, com o tempo, passa a atribuir toda a culpa ao advogado. No mínimo, ele pensa que não recebe a devida atenção.
Além disso, a grande quantidade de cursos de Direito acarretou em duas coisas: a) um sem-número de advogados incompetentes, que não sabem sequer escrever ou se expressar; b) Uma concorrência muito grande, que, pela lógica do mercado, joga honorários e salários para baixo, fazendo com que a profissão não seja atrativa economicamente.
A média salarial de advogado recém-formado, em Belém, é de R$1.000,00. O senhor imagina isso? Um estagiário no pode público ganha R$800. É uma desvalorização total do profissional. É uma vergonha.

Luiza Montenegro Duarte disse...

Ah, sim, há outra questão: A OAB trabalha para atender aos interesses dos grandes escritórios, ao que parece, pois, ao admitir a figura do advogado associado, permite que os mesmos trabalhem sem os direitos trabalhistas conquistados por todas as outras categorias. Na teoria, ele tem autonomia profissional, mas, na prática, um advogado associado cumpre ordens, cumpre horário e não pode simplesmente não comparecer ao trabalho. Ainda assim, não tem direito a férias remuneradas, 13º salário ou pagamento de horas extras. Quem quer essa vida?

Francisco Rocha Junior disse...

Yúdice, tenho uma advogada militantíssima em casa que se orgulha da (e, modéstia à parte, se garante na) profissão e também se irrita com este menosprezo de que falas. Quando perguntada se "só advoga" (ou a variante piorada, se "só está advogando" - como se advogar fosse algo passageiro), ela invariavelmente responde, com uma carinha cínica: "não, eu também tenho uma banca de peixe no Ver-o-Peso".
Abs.

Yúdice Andrade disse...

Até que eu tenho sorte, Luiza. Tenho colegas de docência que já escutaram cada coisa!
No mais, antigamente o salário médio de um advogado iniciante não chegava a isso tudo, não. E os grandes escritórios sabem como explorar.
A tua descrição do mercado de trabalho para advogados está ótima. Quem quer essa vida? o dono do escritório!

Fico imaginando a Teuly, toda gentil, dando essa resposta. Pessoalmente, entendo que perguntas ou comentários imbecis merecem resposta à altura, daí porque o Saraiva, personagem antológico do Francisco Milani, era meu ídolo.