domingo, 13 de janeiro de 2008

Construir e desconstruir um criminoso


Confiando no cinema nacional, ontem fui ao cinema ver Meu nome não é Johnny, de Mauro Lima, até aqui mais conhecido como diretor de videoclipes. Deixarei a abordagem da obra cinematográfica em si aos chatos de plantão que gostam de fazer crítica, sem me furtar de dizer que Selton Mello é um ótimo ator mas que é aquilo mesmo. Já Cléo Pires é só aquilo mesmo. O filme não chega a ser antológico e, na minha opinião, cansa um pouco na reta final, mas tenho motivos para querer falar dele aqui.
Meu nome não é Johnny retrata a evolução de um jovem de classe média nos anos 1980. A família tinha boas condições financeiras e, enfim, João Guilherme Estrella tinha tudo para ser feliz. A família só não lhe deu limites, como aliás o próprio slogan do filme revela. Há uma passagem em que João estoura um morteiro na sala de casa. O pai pensa em repreendê-lo, mas ao descobrir que o motivo do gesto foi a comemoração de um gol de seu time, endossa a conduta do filho. A mãe, cumprindo seu papel de esposa padrão de antigamente, a tudo assiste calada. O pai se revela como o principal elemento deseducador, o que se confirmará mais tarde, quando o adolescente João viver dando festanças em casa, tendo o pai recluso no quarto, tentando resistir à doença que vai matá-lo (e que o mata porque ele prefere isso a deixar de fumar).
A carreira de João começa como tantas. Um amigo — sempre há um amigo desses — propõe que ele experimente maconha. Ele recusa, mas o amigo o critica por se guiar pela cabeça do pai. Para mostrar atitude, postura típica dos adolescentes, ele fuma. E se vicia. E evolui para a cocaína. Todos os seus amigos próximos fumam e cheiram — e confiam que deixarão quando quiserem. O pior é que deixam, mesmo, menos João, que vende a primeira vez meio que por acaso, mas acaba descobrindo seu talento. Encurtando a conversa, torna-se traficante internacional. Sua única meta: torrar todo o dinheiro que ganhar.
João não tem objetivos na vida; é um sujeito vazio. É uma expressão superlativa das consequências da falta de educação e exemplo na família, apesar de algumas tentativas dos pais. Mas sua trajetória, mesmo assim, é de redenção. Não pretendo contar o final do filme, mas como se trata de uma história real amplamente divulgada pela imprensa nos últimos dias, presumo que todos sabem que João quitou sua dívida com a sociedade. Hoje é um homem livre e produtivo. Sua história já pode ser contada para exemplo dos vivos.
Posso, assim, dizer da impressão que me ficou de que Marilena Lopes, juíza encarregada de seu processo, ao condená-lo livrando-o de uma pena longa em cadeia comum, apostou alto. Ela agiu mais como mãe do que como uma juíza rigorosa. Buscou uma brecha na lei para investir em João, por acreditar que podia recuperá-lo. E conseguiu. Declarou expressamente que João é a prova viva de que ressocializar um delinquente é possível.
Chegamos ao ponto. No mundinho atual, em que os ditos cidadãos de bem querem ver mortos ou absolutamente alijados da sociedade os transgressores, querem aumento de penas, regimes mais rigorosos, abominam os benefícios de execução penal, etc., Meu nome não é Johnny permite uma boa reflexão: vale a pena acreditar na recuperação de um criminoso contumaz e nitidamente amoral?
Para fazer esta reflexão, porém, é imperioso destacar um aspecto essencial: fica fácil acreditar na ressocialização de João Estrella, branco, bem articulado, bem falante, inteligente, engraçado, vivendo no meio dos endinheirados cariocas, e ainda por cima interpretado pelo carismático Selton Mello. Quero ver alguém responder a minha pergunta tomando por base os outros presos retratados no filme: negros, desdentados, pobres, sem instrução alguma e sem perspectivas além da violência. É esse estereótipo que a sociedade consegue ver. Somente esse. E para esse tipo de gente, vale a regra: trancar numa cela para sempre ou eliminar.
Então fica a minha pergunta: podemos ressocializar um criminoso? Seja ele um riquinho desorientado ou um ferrado na vida? O sistema permite isso? O sistema existe para isso?

6 comentários:

morenocris disse...

Caramba, Yúdice, que pergunta. Fiquei imaginando várias situações. Já trabalhei na Fbesp, como assessora de imprensa. Não é fácil. Emprego, ajuda profissional, relacionamento familiar, relacionamento afetivo...o sujeito tem que estar cercado de todo esse processo. E ai? Onde buscá-lo? Como tê-lo? É difícil, muito difícil. O meio desfavorável fica mais acessível.
Mas, imaginei tb,, pessoas que têm tudo e na verdade não têm nada. Sabes, o amor ainda é a palavra-chave de tudo e para todos!

Beijos.
O domingo está acabando, Yúdice.
Saudades.

Yúdice Andrade disse...

Concordo com a afirmação acerca do amor, Cris. Porém, isso é apenas um diagnóstico. Com base nele, a pergunta continua no ar, esperando por uma resposta, que impliquem em condutas concretas - dos indivíduos, das famílias, das instituições, do Estado...

Anônimo disse...

Boa reflexão, Yúdice. Quero ver o filme. Acredito que as pessoas podem melhorar, mas com tanta discriminação e com o sistema atual, te digo que é possível (como o filme mostra), porém, muito difícil. Um preso que seja pobre, sem advogado bom etc e tal, mas com familiares que lhe dêem orientação e apoio nesse momento pode ser que tenha chances de ressocializar. Chances remotas, já que o estado não dá a assistência devida, está longe disso. Começa por essa história de fiança, que acho uma grande injustiça...

Abs!!!

Lu.

Obs: Adorei a foto. Quanta alegria, rindo p/ paredes... srsrsrsr

Edyr Augusto Proença disse...

Muito bom. Também assisti no sábado. Estávamos na mesma sessão, das nove e meia da noite? Perfeita a pergunta. Quanto ao filme, também acho que tem razão.

Sylvia disse...

Caro Yúdice,

uma das minhas leituras do filme foi muito próxima da sua. Na verdade eu acho quase impossível não levantar um questionamento acerca da inusitada cena da rigori(z)íssima excelentíssima juíza, morrendo de preocupação com aquele jovem igual jogado em situação aviltante e tendo de conviver com não iguais. Afinal branco de classe média tem mesmo é que viajar para a europa, dar mico colonial nas ruas do velho continente (em lugar nenhum isso é aceitável), e não perder anos de sua vida e beleza junto com os fedidos e desdentados pobres.Mesmo que isso custe a saúde e a paz de outros tantos. Será que era essa a mensagem desse filme tão carioca?

Roberto Barros.

Yúdice Andrade disse...

A fiança é mesmo um instrumento legal repreensível, Lu, na medida em que representa a compra da liberdade. Ou seja, o que define se o acusado deve ou não permanecer preso é sua fortuna, não o seu ato. Isso contraria a chamada culpabilidade de ato, que deve presidir o Direito Penal. Além do mais, ela tinha mais sentido antigamente, quando a regra era o acusado responder ao processo preso e a compra da liberdade constituía uma benesse. Hoje, a regra é a liberdade, o que reduz a importância da fiança. Todavia, acredito que ela não deva ser abolida. Ela pode ser bastante útil, não para prejudicar os pobres, e sim para coibir os mais afortunados, que muitas vezes só mudam sua conduta quando a coisa dói no bolso.

Caro Edyr, estive na sessão imediatamente anterior. Podíamos ter-nos encontrado na saída. Que pena. Fica para a próxima.

Sylvia, ou melhor, Roberto, a possibilidade de uma juíza apresentada como rigorosa ter sido tão generosa partir de uma ideologia de classe é altamente plausível. Foi uma das hipóteses que cogitei e por isso considero oportuno ampliar o debate (quero fazê-lo com meus alunos). Teria sido tão branda com um traficante de outro perfil? No mais, não importa os argumentos empregados. Sabemos que, o mais das vezes, os juízes tomam a decisão que preferem e depois garimpam os argumentos - encontrar alguns belos e comoventes não é difícil.