No dia 23 de março do ano passado, publiquei uma postagem que vale a pena reler para entender melhor o que se segue. Nela, expus uma situação aviltante, na qual uma criança de apenas três anos foi forçada por um juiz a descrever o abuso sexual sofrido, cujo autor era o próprio pai. Agora, lendo o número 503 da revista Época (7 de janeiro), cuja matéria de capa trata do ano de 1968, encontrei uma excelente reportagem entitulada "Em defesa das crianças", a qual explica acerca de novos procedimentos para tomar o depoimento de crianças vítimas de delitos sexuais.
Trata-se do Depoimento sem dano, metodologia instituída em caráter pioneiro na Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre e já copiada em outras quatro capitais. A lógica é proteger a criança de contatos com o seu ofensor, o que facilita a tomada do depoimento e a descoberta da verdade. O resultado é um aumento calculado em 59% no número de condenações — seis vezes mais do que a média nacional. Isso se explica pelo fato de que, normalmente, a vítima é coagida, ainda que implicitamente, pelo agressor e acaba negando o abuso, ou prestando um depoimento frágil, que acarreta a absolvição do réu, no mínimo por insuficiência de provas. Vale lembrar que 40% dos casos de abuso sexual são perpetrados pelos pais e outros 30% por padrastos, namorados da mãe ou, enfim, pessoas muito próximas, o que intimida a criança. Basta estar na mesma sala que uma pessoa dessas e a criança perde a coragem de contar a verdade. O crime, assim, fica impune.
O Depoimento sem dano foi criado a partir de um estudo da promotora de justiça gaúcha Veleda Dobke, reunindo Direito e Psicologia na análise de depoimentos de crianças sexualmente abusadas. Funciona na seguinte forma:
1) A criança chega mais cedo e fica numa sala protegida, cheia de brinquedos. Uma psicóloga ou assistente social especialmente treinada e gasta ao menos meia hora para ganhar a confiança do pequeno e, assim, obter declarações espontâneas e realistas.
2) Somente a profissional fala com a criança. Ela elabora as perguntas, tomando o cuidado de checar antes o vocabulário da criança, a fim de que as perguntas e as respostas sejam claras para todos. Tudo é acompanhado em tempo real pela turma da audiência formal: o juiz, o promotor de justiça, o réu e o defensor, que estão em outra sala e assistem pela TV. Toda a sessão fica gravada, à disposição da justiça.
3) A criança fala no seu próprio ritmo, sem pressa. A profissional ajuda, p. ex. usando marionetes para facilitar a compreensão de como se deu fisicamente o abuso.
Serei curto e grosso: essa é a única justiça que presta, a que respeita a vítima como vítima e, antes, como ser humano. Segundo a reportagem, a metodologia em questão pode se tornar obrigatória no Brasil. Existe um projeto de lei com essa finalidade no Congresso Nacional, o qual já foi aprovado à unanimidade na Câmara dos Deputados e ora tramita (espera-se) no Senado.
É torcer para que, o quanto antes, o Depoimento sem dano se torne uma realidade no Brasil. Minha atividade profissional no tribunal de justiça permite que eu assegure: um processo mal instruído impõe a absolvição do réu. Eu mesmo já concluí pela necessidade de absolver uns tantos, por absoluta falta de certeza quanto a sua real culpabilidade.
Agora só falta os calhordas se insurgirem contra a medida. Quem são os calhordas? Todos os que, invocando a Constituição Federal e os princípios do contraditório e da ampla defesa, disserem que a criança tem que ser inquirida somente pelo juiz, que a psicóloga ou assistente social está distorcendo o depoimento, que o fato de as pessoas estarem em salas separadas retira a legalidade do ato e outras asneiras, cuja única finalidade é, sob o manto de uma legalidade exacerbada e irracional, livrar da cadeia criminosos dessa laia.
Alguns trechos da matéria:
"O medo de falar da intimidade na frente de outras pessoas, sobretudo de homens, explica por que menos de 10% dos processos de abuso sexual de menores chegam à condenação no Brasil."
"Uma peculiaridade do abuso sexual é não deixar testemunha ou marca física. Em geral, a única evidência é o depoimento da vítima. Se for constrangida, ela se cala."
"Ouvir criança falar de sexo é difícil. A pessoa sem preparo não consegue nem elaborar as perguntas."
"Para a vítima, além da culpa, há o peso de conviver com o agressor depois da revelação. Em alguns casos, a pressão pode levar a tentativas de suicídio."
"A assistente explica diversas vezes que a criança não é culpada. Diz que não é o depoimento dela que vai fazer o adulto ser preso, mas sim o que ele fez."
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