No afã de proteger crianças e adolescentes da exploração sexual, o Estatuto da Criança e do Adolescente sofreu alterações através da Lei n. 11.829, de 25.11.2008, que modificou a redação de alguns dispositivos e inseriu outros tantos, inclusive criando novas espécies penais. É onde quero chegar.
A iniciativa é boa, mas a forma de sua execução, duvidosa. Motivado por recursos tecnológicos que, hoje, são amplamente acessíveis, permitindo que qualquer um encha o seu computador doméstico de imagens pornográficas com crianças, o legislador soltou a mão em novidades não exatamente justificáveis. Exemplifico com o art. 241-C incluído no ECA, que tem a seguinte redação:
Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.
O problema do dispositivo acima é não representar violação convincente ao princípio da lesividade, um dos condicionamentos que o Direito Penal democrático impõe sobre o legislador, que não pode incriminar a conduta que lhe der na telha, senão aquelas que representem ataques significativos a bens jurídicos relevantes. Assim deveria ser, num mundo perfeito. Contudo, nossa legislação está repleta de exemplos — e o que pior, alguns recentes — de que o legislador brasileiro não está nem aí para os superiores comandos jurídicos, deixando-se levar por emotividades irresponsáveis, discursos falaciosos e sofismas.
Leia a transcrição acima e me diga: que bem jurídico é violado pela conduta em questão?
Os arts. 241, 241-A e 241-B do ECA aludem a registros, por qualquer meio audiovisual, de cenas de sexo explícito ou pornográficas envolvendo menores. Só que são registros reais, cuja posse e principalmente compartilhamento ou exibição importam em danos concretos à imagem ou à honra de vítimas certas e determinadas. Mas quando o art. 241-C alude a simulação, através de "adulteração, montagem ou modificação", devemos perguntar: quem é a vítima?
Naturalmente, se alguém toma a fotografia de Alice, criança de 5 anos, e a adultera, colocando-a numa situação sexualmente degradante, não paira dúvida de que Alice é a vítima e teve sua privacidade, sua autoestima violadas. Contudo, a adulteração pode ser feita usando-se, p. ex., fragmentos de fotografias, de modo que o rosto final não pertença a nenhum ser humano que já tenha pisado sobre a Terra. Uma pessoa inexistente. Quem é a vítima? Qual o bem jurídico afetado?
O questionamento não é nada desprezível, considerando que hoje, por meio de programas de computador utilizáveis por pessoas minimamente treinadas, é possível criar imagens virtuais e povoar a Internet de crianças nas mais inomináveis situações eróticas. Haverá crime? Supõe-se que sim, na medida em que o legislador, mais uma vez, permitiu-se o uso das expressões genéricas pelas quais é alucinado: "qualquer outra forma de representação visual". Parece natural concluir que, ao criar personagens fictícios através de softwares, o indivíduo lança mão de uma forma de representação visual e, com isso, incorreria em crime. Só que um crime sem vítimas e sem bem jurídico afetado. Algo, por conseguinte, que num mundo civilizado jamais poderia ser criminalizado.
É algo fácil escapar da presente crítica através de outro expediente sempre lembrado pelos utilitaristas de plantão: a vítima é a sociedade, pois toda e qualquer pessoa tem interesse em preservar a integridade moral e genérica de suas crianças e adolescentes. Com essa tradicional válvula de escape, justifica-se qualquer sandice.
Note-se, por fim, que o tipo penal em apreço tem penas superiores às que são cominadas para a lesão corporal leve, violência doméstica, omissão de socorro com resultado morte e maus-tratos, dentre outros. Logo, altamente questionável no que tange, também, ao princípio da proporcionalidade.
Em conclusão, dada a possibilidade de a conduta ser perpetrada contra vítima certa e determinada, o tipo penal justifica-se em parte. Por outro lado, deveria o legislador esforçar-se para respeitar ditames básicos, indispensáveis à legitimidade do Direito, evitando a criminalização excessiva, mal explicada e de duvidosa eficácia social.
2 comentários:
Yudice, não sou da área jurídica, mas me parece, também, que não existe exatmente o CRIME DE PEDOFILIA e a sociedade acaba por ser levada ao erro em achar que essa tipificação está prevista na esfera penal.
É chegada a hora, S.M.J, do congresso estabelecer essa tipificação.
Meu caro Oswaldo, com efeito, "pedofilia" é um termo genérico, que não corresponde a um crime específico. Mas ao contrário do que pensas, é melhor que o Congresso Nacional deixe isso quieto, senão vai fazer besteira, como quase sempre.
Compreenda, meu amigo, que a pedofilia pode ser alcançada por diversos tipos penais diferentes: estupro, atentado violento ao pudor, corrupção de menores, exploração de prostituição, tráfico de pessoas, dentre outros. Para esse assunto, não precisamos de mais leis. Precisamos, isto sim, de autoridades mais comprometidas e eficientes. E acima de tudo, precisamos ter mais vergonha na cara. Porque esse universo nefasto só existe porque muitos cidadãos respeitáveis, endinheirados e colunáveis, adoram fazer uma festinha com crianças.
Isso é fato: sem comprador, não há venda.
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