Uma criança de apenas 9 anos de idade é estuprada pelo próprio pai e engravida de gêmeos. O enredo de todo dia neste país de crimes nefandos se repete, com sofisticações em matéria de consequências. O caso ficou conhecido no país inteiro, provocando indignação por toda parte. E qual é o mais recente capítulo desse drama? A Igreja Católica — sempre ela — resolveu se meter e impedir o abortamento, que já estaria decidido inclusive no que tange aos aspectos legais e práticos. O argumento, aquele da ponta da língua, que já sai automaticamente, é a defesa da vida.
Preciso esclarecer que não sou pessoalmente favorável ao abortamento, no geral. Eu o admito em certos casos — gestação oriunda de violência sexual e doenças que tornem o feto inviável para a vida extrauterina, além do risco de morte para a gestante, que até a Igreja admite —, mas a grande questão, que eu consigo entender e a Igreja não, porque se recusa a isso, é: a decisão não compete a mim. Nem à Igreja.
Com efeito, não está em meu poder — eu, cidadão, profissional, pai, adepto de uma religião que também se opõe ao abortamento, etc. — me imiscuir no caso concreto da menina pernambucana. Porque não serei eu a ter que suportar as consequências dessa ou daquela deliberação. Arvorar-me do direito de decidir por ela é desumano e cínico.
A Igreja nunca abdicou de seu projeto de controlar todas as pautas da existência humana. Não suporta aquilo que não esteja sob seu controle. Mas também não me consta que ela, enquanto instituição, assuma os cuidados com as pessoas em cujas vidas se intromete, sem ser chamada. Quando muito, manda fazer campanhas nas quais os fieis devem trabalhar ou custear financeiramente certas causas. É sempre assim. Os fieis é que devem arranjar dinheiro para reformar e mobiliar os templos, para custear as atividades paroquiais e para viabilizar todas as iniciativas comunitárias. A instituição Igreja não mete a mão no próprio bolso, embora seja riquíssima.
Eu gostaria de saber o que Dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e do Recife, pretende fazer pela criança e seus dois bebês. Pagar o pré-natal? Dar-lhes uma casa, proteção contra violência doméstica, apoio psicológico, comida, lazer, escola? Fornecer-lhe um advogado, que acompanhe a ação penal? Resguardá-la da vitimização secundária? Concretamente, meu piedoso senhor, o que vai ser? Ou será que defender a vida se restringe a garantir que ela venha ao mundo extrauterino, como se não houvesse uma complexa continuidade nisso?
Para que fique bem claro o teor desta postagem, esclareço que não me causa nenhuma alegria ou alívio que esses bebês sejam abortados. Aliás, se eles vierem ao mundo e se alguém decidir cuidar deles e lhes dar todo o amor de que necessitam, para que se realizem plenamente como seres humanos, ficarei imensamente feliz, porque isso me lembrará daquela fé em dias melhores, na humanidade, que precisamos conservar, para prosseguir vivendo. O que definitivamente não tolero é gente que se mete na vida alheia, sem assumir todos os ônus daí decorrentes, apenas pelo desejo de impor a sua própria moralidade. E nisso a Igreja de Roma é ícone.
Com todo o respeito aos católicos, que não necessariamente comungam do pensamento da cúpula do Vaticano, minha paciência com essa instituição está cada vez mais escassa. Ou assume a integralidade da defesa do seu rebanho — e só de quem pertencer ao seu rebanho — ou vai cuidar das suas próprias mazelas internas, que não são poucas.
Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1027006-5598,00-IGREJA+QUER+IMPEDIR+INTERRUPCAO+DE+GRAVIDEZ+DE+MENINA+DE+ANOS+EM+PE.html
2 comentários:
Prezado Yúdice,
como visitante ocasional de seu blog eu gostaria de lhe comprimentar pela análise. A propalada "defesa da vida" da igreja - que se dá inclusive apoiando ditaduras, tiranos e fanáticos, contanto que eles detenham o poder - é em verdade a defesa de seus dogmas fundamentais e, assim, dela mesma. A igreja católica e o cristianismo em geral defendem a vida como princípio primeiro por saber que em verdade o que está em jogo não é a vida de todos, mas o egoísmo humano que defendendo um princípio universal busca decisivamente defender a sua própria vida e a dos seus. desse modo, para a igreja defender a vida significa justificar sempre a necessidade da igreja, que assim se torna uma caixa de ressonância dos anseios do povo, fundamentalmente do de Estados ineficiêntes e hipócritas como o nosso. O resultado final disso é o aumento da significação política da igreja, que assim pode obter do Estado todas as suas reivindicações, tais como a reforma de seus prédios, doações de terras e terrenos e financiamento de festas religiosas. Quanto às meninas estupradas e aos milhões de aidéticos católicos da Africa (para quem o preservativo é pecado), resta apenas a paciência e a piedade de Deus, se é que ambos existem.
Um abraço
Roberto Barros
Roberto, a sua análise é melhor do que a minha. Virará postagem. Abraço e volte sempre.
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