quarta-feira, 26 de maio de 2010

Lost: desejar a liberdade

O caríssimo amigo André Coelho, que tantas contribuições deu a este blog, compartilhando comigo — e portanto conosco — as suas reflexões hauridas em profundo conhecimento da Filosofia, fez uma análise magistral sobre o tema principal desta semana, o encerramento do seriado Lost. Mais uma vez, compartilho.

Atenção: spoilers!

Caro Yúdice, antendendo aos seus apelos, venho me manifestar a respeito de Lost. Vou dividir esse comentário em duas partes. Na primeira, tentarei relativizar sua afirmação, feita na postagem Lost: O Fim, da última sexta, 21 de maio de 2010, de que os rumos tomados pelas últimas temporadas do seriado haviam sido decepcionantes em vista das expectativas criadas nas primeiras temporadas; na segunda, tentarei expressar a minha compreensão acerca de The End, o intrigante e surpreendente episódio final do seriado. Como se pode pefeitamente adivinhar, os comentários que seguem são recheados de spoilers para quem ainda não viu os episódios a que eles se referem.

PRIMEIRA PARTE

Um dos pontos que mais me chamou atenção positivamente na sua postagem foi o uso que você fez, de modo bastante prudente, de marcadores de subjetividade, como "eu esperava que" e "eu cheguei a pensar que", pois eles indicam que seu referencial de comparação do rumo que a série tomou é o rumo que você, pessoalmente, esperava e gostaria que ela tivesse tomado. Desde já destaco que, se o seu parecer final de que "Lost é isso. Decepcionante" for expressão apenas de sua frustração pessoal com a série, no sentido de que o que veio à tela não foi o que você mais teria gostado, ele é, enquanto tal, irrefutável. O que tentarei, sim, refutar é a ideia de que aquilo que veio à tela é decepcionante. E isso me parece expresso na sua postagem quando você fala que "abdicando de todas as questões científicas ou pseudocientíficas que faziam dele um entretenimento inteligente, Lost foi reduzido a uma clássica e singela batalha entre o bem e o mal, personificados num messiânico Jacob e em seu irmão, uma espécie de Satanás". Nisso me parece claro que a opção dos produtores por um viés religioso fez com que, aos seus olhos, a série abdicasse do que a fazia "inteligente", no sentido de intelectualmente provocativa, e abraçasse uma via "clássica e singela", no sentido de clichê e maniqueísta. Disso discordo frontamente, pelos motivos que vou elencar agora:


i) A estratégia inicial dos produtores de Lost para atrairem o enorme interesse de uma massa de telespectadores com as mais diversas preferências televisivas e visões de mundo foi plantar no seriado um conjunto de personagens e elementos tão variados que desse margem para todos os tipos possíveis de expectativas de desfecho para a trama de mistério. Entre os vários temperos postos na receita do seriado, estava o elemento científico das estações, dos números e da Dharma Iniciative. Mas, ao lado desse elemento, sempre estiveram presentes muitos outros. Sempre esteve presente o elemento romântico de casais existentes e possíveis; o elemento dramático da ilha como possibilidade de redenção para pessoas cujas vidas eram fracassadas em algum ponto relevante; o elemento filosófico de como é possível a convivência entre os diferentes numa situação de escassez de recursos e de ausência do Estado; e também o elemento místico, de um assustador e inexplicável monstro de fumaça que ameaçava os losties, de uma possível configuração do destino que havia reunido todas aquelas pessoas, de uma ligação mais íntima com a ilha da parte de John Locke. Mas essa vasta abertura do início não poderia ser mantida até o final a não ser sob o preço de não resolução dos mistérios principais, alternativa que, em vez de satisfazer a todos, provavelmente despertaria fortes sentimentos de frustração e traição e não satisfaria a ninguém. Para darem alguma resposta final, os produtores tinham que fazer alguma escolha entre os diversos rumos possíveis que a trama poderia seguir. Era preciso algum fechamento.

ii) A escolha que os produtores fizeram pelo elemento religioso não trai, portanto, a proposta inicial do seriado. Não trai porque esse elemento sempre esteve presente na trama como um dos vieses possíveis de abordagem da história. Quando os produtores dão ao primeiro episódio da segunda temporada o nome de Man of science, man of faith, encarnando os dois pólos nas personagens de Jack e Locke, fazem uma clara indicação dos dois caminhos que eram possíveis para o seriado dali por diante. As duas célebres frases daquelass personagens no episódio: "Everything happened for a reason" e "I think you are mistaking coincidence for fate" anunciam desde ali os dois possíveis desfechos da narrativa. Assim, não se pode alegar que Lost se "desviou" daquele que era o seu espírito inicial, nem que "enganou" aqueles que esperavam por respostas científicas, muito menos que nunca acenou desde o início com a possibilidade pela qual acabou optando em seu final. E mais: Sempre houve os expectadores que eram "men of science", como Jack, você e eu, e sempre houve os que eram "men of faith", como Locke. Esses grupos tinham expectativas radicalmente opostas sobre o destino do seriado e, qualquer que fosse esse destino, as expectativas de pelo menos um desses grupos de expectadores seria frontamente contrariada. Era inevitável.

iii) O motivo pelo qual os produtores optaram pela visão do "man of faith" foi exposto em inúmeros epidódios, mas eu gostaria de destacar a sequência de episódios-chave centrados na personagem Desmond Hume: "Flashes before Your Eyes" (S3E8), "The Constant" (S4E5) e "Happily Ever After" (S6E11), que construíram a ideia de que havia, sim, um destino, de que o que era capaz de manter a unidade de cada personagem ao longo do tempo era a presença de uma constante para cada um e de que essa constante era uma pessoa amada (O fato de que a constante do descobridor da ideia de constantes, Daniel, capaz de despertá-lo da ilusão da realidade paralela, fosse, ao contrário do que ele supunha, Charlotte, e não Desmond, como anotara em seu caderno, confirma isso). Tudo isso apontava que Lost era no fundo uma série sobre amor, coisa que se confirmou em The End, como depois vou defender. E o que tem isso a ver com o elemento religioso? Tem a ver, porque os produtores optaram pela via que lhes permitiria passar uma mensagem sobre o que é essencial na vida no fim das contas. Proteger a ilha é apenas uma forma de proteger as pessoas, e isso volta a se expressar na frase de Ben para Hurley para lhe dizer como defender a ilha: "I think you have to do what you do best: protect people". Vou desenvolver melhor essa ideia ao falar de The End.

iv) Penso que o viés religioso adotado pelo seriado a partir da quinta temporada também não pode ser acusado de desinteligente, clichê e singelo. E lembre-se que eu sou ateu e tive as mesmas expectativas que você no início de Lost. Primeiro, Jacob não era inteiramente bom, nem seu irmão era inteiramente mau. Ambos eram produtos opostos da educação de uma mãe problemática, que se tornou perturbada, manipuladora e assassina pelo peso do fardo de guardiã da ilha. A lição de Across the Sea não é de que o segredo da ilha é uma luz dourada no fundo de uma caverna misteriosa, e sim de que Jacob e seu irmão são, no fundo, apenas pessoas, momentos da história da ilha, uma história que nem começa nem termina com eles. Por que a mãe dos dois diz "Thank you" ao filho que a matou em Across the Sea? Pelo mesmo motivo por que Jacob não resiste ao ataque de Ben em The Incident: Ele queria se livrar do fardo de seu cargo. Por que a mãe sequestra os dois filhos da náufraga que ela depois mata? Pelo mesmo motivo por que Jacob visita e toca cada um dos futuros losties: Ele precisava de candidatos para substituí-lo, sem o que ele seguiria com seu fardo. Jacob também é manipulador, também é fraco e também é solitário e arrependido do que fez a seu irmão. Ele não é messiânico, mas apenas heroico na sua capacidade de autosacrifício como guardião da ilha, um cargo que ele procura honrar, embora se ressinta de não ter podido escolher, pois lhe foi imposto. Seu irmão não é mau. Ele é apenas um "men of science", que acredita na liberdade, que quer conhecer o que existe fora da ilha e que está disposto a tudo para livrar-se do triste destino que as escolhas de sua mãe acabaram por impor-lhe. Não há nada de satânico nele. Se há nele algo de intrinsecamente mau, é apenas sua inescrupolosidade diante de mentir, enganar, manipular, ameaçar, ferir e matar para atingir seus objetivos, algo que se viu, em maior ou menor medida, também em outras personagens, como Ben, Sawyer e Michael. Não há uma oposição "singela" entre bem e mal, e sim uma oposição complexa entre desejo de liberdade a quase qualquer preço e missão de proteção a quase qualquer preço.

3 comentários:

Luiz Bentes disse...

Era um dos que não perdia um episódio de Lost. Confesso que lá pela 4ª temporada deu no saco. Mas agora com o episódio final da série confesso que voltei a me interessar. Nem estou lendo seus posts relacionados ao assunto pra não ficar sabendo mais do que devo. Você sabe se a 5ª temporada já está disponivel nas locadoras??? Vou retomar a partir daí. Espero que valha a pena.

Yúdice Andrade disse...

Luiz, a quinta temporada está à venda na Internet, o que me leva a concluir que as locadoras já dispõem do box em seu acervo. Pode ser interessante recomeçar daí, mas a compreensão (e sobretudo a emoção) pode ser comprometida se não tiveres uma boa lembrança dos acontecimentos anteriores.

Luiz disse...

É verdade Yúdice. Vou experimentar a partir da 5ª edição. Se encontrar dificuldades, vou passando para as anteriores. Abs,
Luiz