segunda-feira, 10 de maio de 2010

Órgãos perdidos

O fato de eu ser pai permite que eu, agora, tenha uma percepção diferente da ideia de perder um filho. Uma ideia tão terrível que não se retém na mente por muito tempo. Causa uma imediata sensação de repulsa. Como já escutei em mais de uma ocasião, perder um filho constitui uma dor sem igual. Mas, acredite, pode ficar ainda pior. Pelo menos é o que acha uma família do Município fluminense de Cabo Frio.
Tainá, de 19 anos, sofreu um acidente de carro na madrugada do último sábado e teve morte cerebral. A família, então, passou a se empenhar pela doação de seus órgãos, o que era um desejo expresso da jovem. Como revela a mãe em um doloroso desabafo, que você pode ver no vídeo que acompanha a reportagem, ela precisa fazer isso [a doação] para que a filha fique feliz, também. Mas uma conjuntura desfavorável inviabilizou o plano.
Com isso, além do falecimento da filha, o casal que você na imagem ao lado ainda amargará a perda da oportunidade de realizar um dos mais sublimes atos de generosidade que uma família pode realizar.
Não terei a leviandade de afirmar responsabilidades. A hipótese inicial foi de culpa do Estado: ausência de equipamentos na rede pública, para realizar os exames necessários. Mas o Estado informa que o corpo da vítima estaria em choque, o que inviabiliza a retirada dos órgãos. Se assim for, pode não ser culpa de ninguém. O fato mais grave, porém, é que o hospital infornou que os órgãos já foram perdidos.
Segundo o excelente sítio da Associação Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos - ADOTE, um único indivíduo saudável pode ajudar 25 pessoas, doando: "2 rins, 2 pulmões, coração, fígado e pâncreas, 2 córneas, 3 válvulas cardíacas, ossos do ouvido interno, cartilagem costal, crista ilíaca, cabeça do fêmur, tendão da patela, ossos longos, fascia lata, veia safena, pele." Já existem casos de transplante de mão e três casos de transplante de rosto, considerados procedimentos extraordinários.
Não encontrei informações atualizadas, até porque o Ministério da Saúde ainda não disponibilizou dados sobre a lista de espera (embora tenha prometido fazê-lo), mas em 2008 havia 71.349 pacientes à espera de um transplante no Brasil. Eis aí imagens de uma campanha realizada pelo governo:




A esmagadora maioria dos brasileiros, até hoje, é composta por não doadores de órgão e tecidos. Um egoísmo que chega a constituir uma brutal desumanidade. Já perguntei a um sem número de pessoas porque não são doadoras e nenhuma anote aí: nenhuma soube me dar uma explicação. Elas não são porque não são. Isso consegue ser ainda mais terrível do que uma família querer doar e não conseguir.

7 comentários:

Tanto disse...

A questão da doação de órgãos é bem complicada, acho! Conheço uma pessoa das mais esclarecidas, por exemplo, que é terminantemente contra a doação de órgãos. Ela acha que sempre haverá um médico sem escrúpulos capaz de atestar a morte para, simplesmente, doar os órgãos a quem lhe interessar.

Ana Miranda disse...

Eu nunca tive medo de morrer, mas sempre tive pavor de pensar que um filho pudesse morrer antes de mim.
Realmente, a dor da perda de um filho é a mais angustiante dor que há, e como você mesmo disse Yúdice, às vezes, consegue ainda ser pior. Tomara que a explicação dada, que o problema foi o estado de choque em que se encontrava o corpo da jovem, seja real.
Aqui em casa, todos nós, somos doadores universal de órgãos e sempre cobramos um do outro a responsabilidade de não se esquecer de pedir a retirado dos órgãos na fatídica hora...

Yúdice Andrade disse...

Honestamente, Fernando, já lidei com pessoas desse tipo e estou convicto de que esse papo de que os médicos fraudarão a minha morte para tirar os meus órgãos é papo furado. Isso é o esforço do sujeito em dar uma justificativa nobre para a sua imperdoável desumanidade.
Pode acontecer? Claro que pode. Sempre. Mas eu realmente não acho que esse mercado esteja assim tão ativo, ainda mais porque a maioria dos necessitados não têm dinheiro para comprar órgãos.

Quem bom que toda a família se importa com os outros, Ana. Um exemplo a ser seguido.

Carlos Barretto  disse...

Amigo Yúdice
De fato, o estado de choque inviabiliza a doação de órgãos. Contudo, porém, todavia, existe um ítem básico na área de Medicina Intensiva, que todo intensivista tem na cabeça, que se chama "Suporte Básico ao Potencial Doador de Órgãos". Entre medidas simples, inclui manter boa oxigenação do potencial doador (o que é feito com os ventiladores artificiais disponíveis em qualquer UTI), além de manter boa hidratação (com uso de cristalóides e expansores de volume), corrigir distúrbios hidroeletrolíticos e ácido básicos (mera rotina) e até o uso de drogas vasoconstritoras (como dopamina, noradrenalina), medicamentos habituais e absolutamente livres de qualquer complexidade, utilizadas regularnente nos estados de choque.
Só considero portanto o argumento do estado de choque válido, se a despeito de todas estas medidas, o choque persistir (quando então é dito "refratário"), e de fato, inviabilizar a doação.
Abs

Ana Miranda disse...

Ah, esqueci de comentar: Adorei as gotinhas de água...

Luiza Montenegro Duarte disse...

Também acho que a justificativa é mera desculpa para seu próprio egoísmo, professor. Ninguém é tão paranóico assim, do contrário, não sairia de casa. Além disso, é necessário o consentimento da família. O carimbo na carteira de identidade não é suficiente (acho que concordo com isso). Para sanar esse problema, dando maior formalidade e segurança à vontade da pessoa, sem que a família possa ser contra a sua decisão, creio que uma solução seria o "living testament", que se popularizou no direto americano e que trata também sobre a ortotanásia, quando o doente não tiver condições de fazer uma opção consciente.

Yúdice Andrade disse...

Barretto, é ótimo poder contar com amigos médicos fornecendo esses esclarecimentos. Já dei destaque.

Eu também, Ana.

Não gosto da sociedade americana, Luiza, mas reconheço que eles adotam, há anos, alguns procedimentos que, talvez, funcionassem bem no Brasil, desde que parássemos com essa mania de lidar com as grandes questões éticas com base em chororô, falsos moralismos e preceitos religiosos ultrapassados ou que, mesmo não ultrapassados, de modo algum poderiam ser impostos a todos, num Estado que se diz laico.