Li no jornal de hoje que o governo do Estado pretende mandar à Assembleia Legislativa um projeto de lei tornando obrigatório aos médicos formados pela Universidade do Estado do Pará que, por algum tempo, trabalhem em unidades de saúde do interior. O fundamento é que a enorme carência de médicos no interior seria suprida dessa forma, de modo que os profissionais recompensariam a sociedade pela formação recebida, "sem custos", diz a nota.
Há mais de um senão na proposta, contudo.
Antes de mais nada, deixo claro que as muitas dezenas de Municípios do interior merecem medidas concretas para dotá-los de médicos e demais profissionais de saúde. A carência é grave e histórica, como todos sabemos. A situação é tão peculiar que muitas prefeituras chegam a oferecer salários vistosos a médicos, mesmo com vínculo precário e temporário, e ainda assim poucos aceitam a oferta, porque não têm interesse em abdicar da vida citadina e seus prazeres. De que adianta ganhar dinheiro sem ter onde gastar? Isso é o que devem pensar muitos deles. Outros tantos, mais inteligentes, firmam esses contratos como forma de fazer um pé de meia para, depois de um certo tempo, seguirem os planos que possuam. É a dura realidade de nossos interiores atrasados, abandonados pelos governos.
No final das contas, os médicos que fazem carreira pelos interiores acabam se tornando pessoas tão conhecidas que, frequentemente, enveredam pela política e, assumindo ares de benfeitores, trocam o benefício ao próximo pelo carreirismo político, com todos os seus vícios.
A despeito da motivação nobre, é de se questionar a constitucionalidade da medida. Ainda mais eu, opositor n. 1 do serviço militar obrigatório, que considero uma violência e que me violentou muito, quando precisei me submeter a essa humilhação. É preciso saber se o Estado (lato sensu) tem legitimidade para impor esse tipo de exigência. E caso seja possível, não seria necessária uma lei federal?
Como li apenas uma notinha e não tenho conhecimento sobre o teor da proposta, não sei qual a real intenção do governo. Obrigar a realização de uma espécie de estágio? Instituir uma disciplina prática, a ser cumprida nas comunidades distantes? Ou, como se dá a entender, estabelecer uma exigência posterior à conclusão do curso? Esta última hipótese é a mais suspeita, porque a legislação do ensino não instituiu esse tipo de exigência como requisito para obtenção do grau. Logo, não haveria respaldo jurídico para forçar um acadêmico a subscrever uma espécie de termo de compromisso, quando de sua matrícula na UEPA.
Por último, gostaria de lembrar que a universidade gratuita não é cursada sem custos. Para mantê-las, pagamos impostos vergonhosos, por isso a formação que elas nos proporcionam é apenas a devolução do que a sociedade faz para sustentar o Estado. E uma devolução bastante capenga.
Eu me formei na UFPA, portanto no ensino superior público. Alguém pagou o curso para mim. Milhões e milhões de brasileiros. E hoje eu, com a extorsão anual que sofro, ajudo a pagar os cursos de centenas de milhares de brasileiros e acho isso corretíssimo e justo. Porque é para isso que serve o meu dinheiro. Fico muito feliz de saber que, dos meus impostos, sai a possibilidade de profissionalização de uma enorme parcela de brasileiros que, como eu mesmo, não teriam podido chegar ao ensino superior não fossem as escolas públicas.
No que tange aos objetivos deste artigo, portanto, impor uma obrigação civil com base em gratuidade não é exatamente o melhor argumento, já que o acadêmico paga impostos em tudo que compra, se não for ele mesmo um contribuinte por outras vias — IR, IPTU, IPVA, etc.
Espero conhecer melhor a tal proposta, para formar um juízo mais conclusivo a respeito.
6 comentários:
Eu tenho a impressão que a medida é inconstitucional. Eu concordo contigo que a preocupação tem seus méritos, mas não podemos desconsiderar a gravidade da medida,caso ela não seja acompanhada de outras estruturantes para o sistema de saúde do Pará.
A dura realidade de nossos interiores atrasados, abandonados pelos governos, poderá mudar com a divisão territorial do Pará e a consequente criação dos Estados de Carajás e do Tapajós.
Basta fazer a seguinte comparação: é mais fácil administrar uma imensa e imponente mansão de 7 suítes ou um modesto kitnet de 2 quartos e cozinha americana?
Acho que, fazendo essa comparação, concluímos facilmente que as campanhas contra a divisão do Pará só interessam a meia dúzia de pessoas que vivem encasteladas na capital, longe do sofrimento e do abandono em que vivem as pessoas nos municípios mais distantes.
Sou de Belém, mas vejo que não há outra saída para nosso Estado. Dividir é a solução. Só assim o poder público estará de fato próximo da sociedade em lugares como Anapu, Anajás e Quatipuru, só para citar alguns municípios frequentemente esquecidos por nós.
Hipocrisia? Não, eu NÃO te quero grande!
E parabéns pelo excelente blog!
Juliana Farias
Acadêmica de Direito
Há outro porém, no interior não há muitas oportunidades de o profissional fazer cursos, acompanhar os avanços tecnólogicos cada vez mais presentes na medicina e se manter atualizado. Assim, ele acaba virando um Clínico Geral, e aí, para que terá servido tantos anos de estudo?
Querido professor,
Vou ter que discordar do senhor em um ponto: sobre serem mais inteligentes os que vão ao interior, para fazer um pé de meia. A decisão de ir para lugares inóspitos independe de inteligência, na minha opinião.
Creio que seja um ato de desprendimento, pois a escolha pode influenciar em muitos aspectos da vida.
Não acho que a pessoa abra mão somente dos prazeres da cidade grande, mas, no caso das cidades paraenses, é obrigada a abrir mão de coisas que, para nós, são essenciais para a boa qualidade de vida.
Em outras regiões do Brasil, é possível encontrar cidades de interior bem-estruturadas, limpas, com um sistema de esgoto razoável, comunicação confiável e vias de acesso em boas condições.
No norte e no nordeste, trabalhar em alguns lugares pode ser visto como uma verdadeira missão, só encarada pelos muito necessitados ou muito abnegados, pois é miséria e isolamento (pessoal e profissional) para todo lado.
Nem todos estão preparados e podem até evoluir para um quadro de depressão, situação que dinheiro nenhum compensa.
Quando conheci Marabá, que está longe de ser um lugar ruim, pensei que seria difícil viver ali, de qualquer forma. Não seria impossível eu me acostumaria, mas seria doloroso. A despeito de ser uma cidade economicamente vigorosa, as pessoas tem uma vida muito limitada. Não consegui me enquadrar em nenhuma conversa, pois os assuntos passavam longe do que eu vivenciava.
Encontrei somente uma pessoa interessante para conversar. Ele era cearense e diretor de uma siderúrgica. Disse que essa era uma das grandes dificuldades de manter bons profissionais ali. Por mais que se oferecesse o dobro do salário pago nos grandes centros, as pessoas não conseguiam passar muito tempo, pois se entediavam e se sentiam deprimidas. Além disso, a preocupação com a violência e com a educação dos filhos era enorme. A taxa de homicídio é altíssima e a maioria fica impune. As duas únicas escolas particulares da cidade deixam muito a desejar.
Assim, a rotatividade é impressionante. Se isso ocorre em Marabá, imagine em Breves, por exemplo.
No que tange ao tópico em si, também me parece inconstitucional. A UEPA já tem os estágios rurais (internos deveriam passar uma temporada em cidades do interior), mas não sei como funcionam exatamente. Talvez pudessem ser aprimorados.
Quanto aos profissionais, enquanto as cidades não oferecerem condições mínimas para uma boa qualidade de vida, não existe salário alto que seja suficientemente atrativo.
Por que a postagem foi removida pelo autor?
Sabemos como a coisa (não) funciona, Itajaí: o governo adora impor obrigações para o cidadão, mas não faz minimamente a sua parte. Agora imagina acadêmicos e profissionais trabalhando em locais sem a menor infraestrutura. O atendimento pode até melhorar um pouco, devido ao preenchimento da carência de pessoal. Mas e o resto? Vai continuar morrendo gente.
Obrigado pela gentileza, Juliana. Corajoso o seu ponto de vista. Discordo dele entretanto, no mérito. E penso que a redivisão territorial deve ser encarada sob argumentos que excedam o aspecto quantitativo. Mas estou aberto a discutir o tema, que por sinal acompanho com grande interesse.
Verdade, Ana. A questão da falta de condições para qualificação profissional é importante. Não mencionei isso antes.
A inteligência, querida Luiza, foi apenas uma provocação. É claro que uma decisão dessas não pode ser tomada apenas com base em inteligência. Mas assim como a minha redação motivou a tua resposta, quem sabe outra pessoa também não vem deixar uma outra contribuição ao debate?
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