Há coisas que nunca mudam. Pode ter certeza: é só haver um feriado prolongado e, nos dias seguintes, a imprensa falará sobre a enorme quantidade de acidentes de trânsito, com muitas vítimas, inclusive fatais. Acabamos de passar pelo feriado de Corpus Christi e o que vemos é mais do mesmo. As tragédias do feriadão se somam às das baladas de final de semana e os corpos vão sendo empilhados. Não vão para a conta do Papa. Vão, provavelmente, para a conta das cervejarias — aquelas cuja publicidade não prejudica ninguém —, em faturas jamais pagas.
No Rio de Janeiro, madrugada dessas, quatro jovens morreram em desastre urbano. Vinham da balada. O carro era um Audi, revelando o provável poder aquisitivo do grupo e a espécie de lazer da última noite: boates famosas, música eletrônica e muita bebida. Sensibilizou-me ver o depoimento da irmã de uma das vítimas. Dizia que se falava tanto para ninguém beber e dirigir, mas as pessoas o faziam e ali estava o resultado.
Para variar, o problema é bem mais complexo do que isso. Não se trata de uma simples relação entre as inconsequências da juventude e o alcoolismo tolerado. A coisa começa bem antes, durante o processo de habilitação dos novos motoristas.
As auto-escolas, com preocupações precipuamente financeiras, limitam-se a ensinar o aluno a movimentar o veículo e o fazem a decorar as regras de circulação de que precisará para passar na prova do DETRAN. Não há um foco para a proteção da vida, do próprio condutor ou de terceiros. Ensina-se apenas aquilo que, no mais raso dos utilitarismos, favorecerá a aprovação. Em vez disso, a escola deveria fazer o que toda escola deveria fazer: ensinar com senso ético, fazendo o aluno entender a seriedade do ato de dirigir. Mas a escola que fizesse isso teria custos adicionais, ao mesmo tempo em que perderia alunos. O cidadão comum não quer ser incomodado com essas bobagens éticas.
As provas do DETRAN também se destinam a medir habilidades menores (mover o veículo é a parte mais fácil do processo de dirigir) e a capacidade de memorização de regras, placas e outros que tais. Jamais são elaboradas com vistas a aferir se o candidato a motorista compreende as responsabilidades que lhe são exigidas. A Escola de Trânsito viria a minorar esses problemas, mas duvido de sua eficácia. Aliás, conheço uns tantos que compraram o certificado das aulas de direção defensiva. Renovaram a habilitação sem jamais ter passado por essas aulas. E alguns comentam com ódio a palhaçada que é exigirem isso deles.
Aliás, o DETRAN não é exatamente o melhor espaço para se criar uma cultura de cidadania. Chafurdado em velhas práticas, sempre estimula o gosto pelo jeitinho.
Se quisermos, podemos ir mais longe. Antes do DETRAN e do processo de habilitação, podemos encontrar famílias ensinando seus filhos adolescentes (e até crianças!) a dirigir. Se ensinam, criam neles a expectativa de usar o carro. E emprestam o carro! Claro, só uma voltinha no quarteirão, só uma ida à casa de um amigo ou da namoradinha. Que que tem? Que que tem?
Se a própria família ensina o moleque que não há mal nenhum em violar a lei, em ser sub-reptício, em fomentar situações perigosas, como esperar desse jovem que, mais tarde, ele tome alguma iniciativa de responsabilidade?
O mais triste é que a guerra do trânsito — a expressão é dramática, porém verdadeira — não atinge apenas os soldados dos exércitos em confronto. Ela é quase sempre a guerra das vítimas civis. Dos que morrem nas calçadas, aguardando um transporte; dos que são atropelados pelas costas, sem sequer saber o que os atingiu; das crianças vitimadas enquanto brincavam; das pessoas atingidas nas portas de suas casas, às vezes dentro de suas casas, alcançadas por veículos que atravessaram uma parede!
Concordo com o enrijecimento das leis de trânsito, inclusive criminais. Este é um setor para o qual a medida vale a pena. Mas, é óbvio, justamente para ele a sociedade não vai querer leis mais duras. Porque raras são as pessoas que não desejam tornar-se condutoras de veículos. E uma vez atrás do volante ou em cima de uma moto, querem toda a liberdade do mundo. E você que saia da frente.
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