segunda-feira, 12 de maio de 2008

Liberta pela maternidade

Humanização da Justiça
Gravidez pode fundamentar a soltura de uma mãe?

por João Baptista Herkenhoff


As sentenças dos juízes podem ter alma e paixão? A gravidez pode fundamentar a soltura de uma presa? A meu ver, o esquema legal da sentença não proíbe que nela pulse a emoção, conforme o caso abaixo. Na minha vida de juiz, senti muitas vezes que era preciso dar sangue e alma às sentenças. Este artigo contém, no seu bojo, o despacho que libertou Edna, a presa que ia ser mãe. Esta peça judicial resume minha concepção do Direito.
Como devolver a Edna, protagonista do caso, a liberdade, sem penetrar fundo na sua sensibilidade, na sua condição de pessoa humana? Foi o que tentei fazer.
Edna, uma pobre mulher, estava presa há 8 meses, prestes a dar à luz, porque fora apanhada com algumas gramas (sic) de maconha. Dei um despacho fulminante, carregado da ira santa que a injustiça provoca. Eis sua transcrição:


A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão. Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará de soltura.



Edna encontrou um companheiro e com ele constituiu família. Mudou inteiramente o rumo de sua vida. A criança, se fosse homem, teria o nome do juiz, conforme declarou na audiência. Mas nasceu-lhe uma menina que se chamou Elke, em homenagem a Elke Maravilha.
Onde estará Edna com sua filha?
Distante que esteja, eu a homenageio. Pela tarde em que a libertei, por essa simples tarde, valeu a pena ter sido juiz.
[Artigo publicado originalmente no site da Associação dos Magistrados Brasileiros]
Revista Consultor Jurídico, 11 de maio de 2008

João Baptista Herkenhoff (livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo, professor de mestrado em Direito e escritor) é conhecido e respeitado, tendo obras no campo dos direitos humanos. Eis aí uma mostra de suas ideias, num caso concreto. Não se trata, contudo, de um caso recente. Apesar de publicado ontem, na revista retromencionada, o texto (a parte em itálico) espelha uma situação da qual tomei conhecimento ainda na faculdade, como acadêmico. Lá se vão, portanto, mais de 11 anos. Acredito que Herkenhoff re-editou o episódio, para incluir a informação sobre os rumos tomados pela protagonista.
No lugar dele, não teria feito o discurso apaixonado que fez, apenas porque pessoalmente não gosto desse estilo novelesco. Floreios demais me aborrecem e, se é verdade que o juiz deve ser honesto e expressar os sentimentos que realmente nutre — com o que concordo de todo —, por outro também me parece verdade que precisa guardar uma boa dose de serenidade. Eu mesmo não confiaria num magistrado que se descabelasse todo para proferir uma decisão.
No mérito, minha decisão seria no mesmo sentido, mas baseada somente no princípio da intranscendência da pena (o bebê que a ré espera não pode sofrer pelo delito cometido por sua mãe), na desnecessidade da medida e na pouca expressão do fato, já que se trata de posse de poucos gramas de maconha. E isto na pressuposição de que a ré tinha intenção de tráfico, que é o delito grave. Se fosse posse para uso pessoal, eu jamais manteria o réu preso, mesmo nos tempos em que isso era possível. Hoje, com a vigência da Lei n. 11.343, de 2006, as penas cominadas para o crime em questão são advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28).

9 comentários:

Anônimo disse...

Professor!Ha quanto tempo que nao comento aqui.
Mas, pude ver que o blog continua otimo!
Beijos

Anônimo disse...

Acalentador saber que existem magistrados com tamanha lucidez e humanidade, avessos às cegueiras impostas pela produção midiática.

Confesso, como acadêmico de Direito, que revigora meu ânimo, mesmo que utópico, pela luta de uma maior humanização do Direito e no Direito. Afinal, todas as idéias que transpassaram as vigentes eram, em sua gênese, utópicas.

Ao ler o [i]post[/i] veio ao meu pensamento de que manter uma grávida presa afronta o princípio da intranscendência da pena, claro,não pensei de forma imdetiada neste nome, mas no fato da pena não poder passar da pessoa do condenado.

Excelente [i]post[/i] primo.

Grande Abraço

Anônimo disse...

Acontece, meu caro Jean Pablo, que mesmo com a soltura da mulher grávida, o nascituro continuará "PRESO" no ventre materno.
Isso demonstra a fragilidade, data venia, da tese.

Yúdice Andrade disse...

Querida Laila, que bom te ter de volta por aqui. Compreendo que estás muito ocupada. Mas sempre que puderes, estamos aqui. Grato pelas palavras.

Caro anônimo, acredito que sua opinião venha com uma carga de subjetividade que, confesso, não consegui alcançar de todo. Afinal, o nascituro estar no "claustro materno" (minha esposa detesta essa expressão) é uma injunção da natureza e, se é natural, em princípio não poderia ser considerado algo ruim.
O que se questiona a partir da decisão do Herkenhoff, de minha opinião e do comentário do Jean, é que a prisão da gestante lhe impõe condições desfavoráveis de vida, que repercutem sobre a gravidez, prejudicando o bebê. Uma vez livre, esse problema em tese seria suprimido, podendo a natureza seguir seu curso.
Refiro-me, mais diretamente, à falta de espaço na cela para que a gestante se deite numa cama confortável, repouse adequadamente, alimente-se em quantidade e qualidade adequadas, tenha acesso a consultas pré-natais e seus consectários, etc. Estas coisas, mínimas, se ausentes, podem comprometer o desenvolvimento do bebê ou a sua saúde. É isso que gostaríamos de impedir.

Anônimo disse...

Melhor seria que a mulher se "IMPEDISSE" de praticar o crime.
Todos são iguais perante a lei.
Ela poderá ter a necessária assistência médica (etc.) na própria cadeia ou eventuais licenças. Mas não ficar simplesmente IMUNE da prisão porque se encontra em estado de gravidez.
A função do juiz não é fazer caridades ou assistencialismos.
(Toda mãe, como tal, é sempre uma santa. Mas a mulher deliquente, por estar gestante, não deixa de ser bandida e criminosa).
Ajoelhou tem que rezar...

Anônimo disse...

Anônimo

Creio que Yudice e eu estamos tentando explicar é a condição do nascituro e não da grávida. Queremos preservar um nascimento digno e sem perigos aos nascituro e não extinguir a punibilidade da grávida pelo simples fato de estar grávida.

O que se tutela é o feto que tem, legalmente falando, expectativas de direitos que não podem ser ignorados pura e simplesmente. Se o juiz assim determinou foi porque suas convições foram a de que ela não representaria um perigo à sociedade.

Em momento algum dissemos que a mulher deixou de ser "bandida" ou "criminosa", como colocas, termos que não costumo usar quando desconheço os motivos que levaram a tornar-se tal.

Mas entendo sua posição, é comum que a pessoas pensem assim diante de tanta desgraça e ache que a solução dos problemas está em cada vez mais prender e apertar a redes de coerção.

Yúdice Andrade disse...

Anônimo das 24h47, de fato, o ideal seria que a mulher não cometesse o crime. Mas isso, claro, se vivêssemos num mundo perfeito, o que não é o caso. Sendo realistas, dado o crime como premissa - o fato já aconteceu -, agora precisamos saber o que fazer com os envolvidos. O trato da delinqüente deve ser processo-condenação-pena, incluída a prisão, se for o caso.
Ocorre que estamos falando do bebê e não da mãe que violou a lei. Esse é o foco, como muitobem delimitou depois o Jean, por cuja manifestação lúcida agradeço.

Anônimo disse...

E o bebê, enquanto nascituro, não vai junto com a mãe?
Ou melhor: a mãe não vai junto com o seu bebê na barriga?
Então...
Ela (ela, sim) é a bandida, crimiosa, safada, delinqüente. Portanto, deve ficar na prisão.
O mundo atual não tolera mais idéias ingênuas e românticas.
Deixa o bebê em paz, sô... Ele está bem acomodadinho do útero materno (dessa mulher criminosa), onde ela estiver. O pobre do bebê nem sabe o que acontece do lado de fora...
É isso aí.

Yúdice Andrade disse...

Anônimo, não sei como você não cai tonto no chão, de tanto que gira em torno do próprio eixo. Não há argumentos, nada que sustente um debate, só esse eterno ela-é-bandida-criminosa-safada-delinqüente, portanto merece tudo o que de pior o mundo reserve e blá blá blá. E ainda me diz para deixar o bebê em paz, como se eu é que fosse contrário a isso.
Já entendi seu ponto de vista, porque o conheço muito bem e o escuto todos os dias. Bandido bom é bandido morto. Ok, já sabemos. Não precisa repetir.