sábado, 31 de maio de 2008

Show de desinformação

A Rede Globo odeia a legislação penal brasileira. Considera-a muito branda e procura fazer toda a nossa população pensar da mesma forma. Como há boas razões para acreditar na alegação, fica fácil angariar simpatias para ela. O problema é fazê-lo com base na desinformação.
Ontem à noite, o Jornal Nacional exibiu matéria relacionada ao crime de homicídio. Começa daí: reduzindo a criminalidade ao seu aspecto mais gritante, que é o da criminalidade violenta e que está longe de ser o único.
A reportagem afirmou expressamente que um acusado de homicídio, se confessar, será sempre condenado a seis anos de prisão, em regime semiaberto. Mentira. Não é erro, não: é mentira, mesmo. Má fé. Vamos lá:

1) 6 anos é a pena mínima do homicídio simples. Se o crime for qualificado, a pena mínima pula para 12 anos, mas isso foi sumariamente omitido.

2) Embora a lei preveja a confissão espontânea como atenuante obrigatória, não existe nenhuma relação entre ela e a imposição de pena mínima. Como o cálculo da pena se opera em três fases, pode ser que na primeira — a chamada pena-base — o réu receba o máximo e sobre este valor incida a atenuante relativa à confissão. Por conseguinte, mesmo réu confesso, ao menos em tese, poderia ser condenado a quase 20 anos de reclusão (homicídio simples) ou quase 30 (qualificado).

3) O cálculo da pena é um processo complexo, que envolve diversos referenciais. Alguns deles são muito mais importantes que a confissão, p. ex. a reincidência. Não há o menor respaldo legal para o que foi afirmado.

4) A definição do regime penitenciário tem mais a ver com a análise dos mesmos fatores que determinam o montante da pena do que com o valor final da mesma. Uma pessoa condenada a 6 anos de reclusão pode ser mandada para o regime fechado, sim, se o juiz entender que as características do caso concreto recomendam isso. Aliás, a lei permite o regime fechado até no caso de penas menores, dependendo de fatores particulares, o mais importante deles a reincidência ou a natureza hedionda do delito.

A reportagem também dá a entender que progressão de regime é uma situação que coloca o preso em liberdade. Mentira. Progressão significa passar de um regime penitenciário para outro, mais brando. Quem está no fechado passa para o semiaberto e permanece recolhido a uma instituição penitenciária, sem direito a sair dela, somente por isso. Medidas como as saídas temporárias têm mais a ver com o comportamento do apenado do que com o regime no qual está inserido. Ao menos em tese, um condenado em regime fechado pode receber autorização de saída, e um no semiaberto, não. O mérito é pessoal.
Também constitui má fé não dizer ao público, nem de longe, em que realmente consiste a progressão e para que ela existe. Sem essas informações, ninguém está apto a formar opinião sobre o assunto.
Em suma, a reportagem foi um lixo. Mas a cobertura que a Globo dá aos temas penais sempre abusa das omissões, das informações técnicas incorretas, do excesso de dramaticidade e por aí vai. Não me parece que isso tenha a ver com Q de qualidade.
Horas depois, o Jornal da Globo exibiu a última reportagem da série sobre o sistema penitenciário, destacando as experiências que dão certo, os presos que dão mostras reais de recuperação. Sinceramente, nem parecia a mesma emissora. Ponto para o Jornal da Globo.

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