Quando um adolescente comete um fato definido em lei como crime ou contravenção — que no contexto é chamado de ato infracional —, pode ser submetido a um procedimento de investigação e, ao final, sofrer uma medida socioeducativa, que se diferencia da pena criminal porque enquanto esta é a princípio punitiva, aquela tem a finalidade que o nome enuncia: educar, (res)socializar. Isso, claro, na teoria. Durante esse procedimento, contudo, o adolescente infrator pode merecer a remissão, um perdão para sua falta (arts. 186, § 1º, e 188 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
Baseado nessa norma legal, o promotor de justiça de Abaetetuba, Lauro Francisco da Silva Freitas Júnior, pediu ao juízo da Infância e Juventude daquela comarca que exclua do processo a menor L. — sim, a que esteve presa com 20 homens e foi sucessivas vezes estuprada. Alega o promotor que ela passou de infratora e vítima.
Claro que a tchurma da moralidade vai aparecer por aqui bostejando as suas asneiras e sandices de sempre (que serão ignoradas), mas tentemos ser isentos.
1. Não conheço as razões arguidas pelo promotor, mas suponho que se baseou em argumentos já bastante conhecidos da doutrina penal mais moderna, que podem ser sintetizados nos seguintes termos: fatos posteriores ao crime podem acometer o criminoso tão gravemente que tornem a pena criminal desnecessária. É o que ocorre com os linchamentos.
2. L. era acusada de vários furtos e respondia por pelo menos um. Isso faz a bancada da moralidade legitimar toda a violência sofrida, como se fosse seu merecimento. Mas vale lembrar que, para um adulto, a pena máxima de um furto simples é de 4 anos de reclusão. No caso de um adolescente, dentre as medidas socioeducativas previstas no art. 112 do ECA, as mais graves seriam afastadas, porque não se trata de fato de maior gravidade. Portanto, a pena real por ela sofrida — estupros sucessivos — é muito superior ao legalmente admitido neste país, até porque nossa Constituição veda penas corporais. Aliás, até a legislação de países muçulmanos tem mais lógica do que isso.
3. Não diria que o pedido do promotor tem apelo midiático. Os holofotes já se apagaram. Acredito que ele esteja apenas fazendo o seu papel — já que é fiscal da lei, que deve ser aplicada finalisticamente — e, como cidadão, dou-lhe os parabéns pela lucidez e serenidade. Espero que seus colegas de Parquet tenham o mesmo bom senso, quando necessário.
4. De modo algum se pode dizer que a sanção criminal — ou, como no caso, a medida socioeducativa —, por ser um procedimento legítimo do Estado, deve ser aplicada mesmo na premissa aqui abordada, sob a alegação de que a violência sofrida foi ilegal e criminosa, imputável aos seus específicos causadores. Afinal, a punição é exercida sobre a mesma pessoa. Se o Estado já falhou em preservar o acusado para sofrer a sanção legítima, coerente que suporte tais ônus.
A remissão pedida pelo promotor não constitui um favor a L., como forma de botar panos quentes na situação ou mimá-la, já que a atuação do MP foi questionada nesse episódio. Trata-se, isto sim, de uma medida que poderia ser aplicada, em tese, a qualquer outro caso. E sem maiores paixões deve ser entendido.
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