Não falarei sobre a absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos Moura, o "Bida", pelo tribunal do júri, ontem. Não conheço os autos e, por isso, deixo manifestações baseadas estritamente na imprensa e no ouvir falar para quem não carrega a conjugada condição de advogado e professor de Direito Penal. O caso aludido é apenas o mote para esta postagem.
Frequentemente, um julgamento — não necessariamente criminal — pode trazer à tona questões muito mais amplas e impactantes do que a causa em si. Desse modo, o veredito a ser proferido passa a ser um desafio, porque não apenas deve enfrentar o Direito: deve enfrentar os efeitos sociais, políticos, econômicos e de outras ordens, que provocará sobre toda a sociedade.
Em geral, esses julgamentos ocorrem no âmbito dos tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal. Há exemplos relacionados ao poder da União de tributar (o caso da CPMF, p. ex.) e ao comportamento de instituições financeiras, de grande impacto no bolso de todos nós. Há decisões sobre o reconhecimento de uniões homossexuais, mudando o conceito original de família e criando todo um novo sistema de sucessão por morte.
A ADPF 54, que decidirá acerca da existência ou não de crime de abortamento, em caso de fetos portadores de anencefalia e agravos similares, se julgada procedente, afetará a tomada de decisões de muitas pessoas (notadamente aquelas que, sendo ou não contrárias ao abortamento por razões morais, só não o realizam porque o entendem criminoso e, nesse caso, deixariam de ter essa pressão), além de forçar o Estado a mudar suas políticas públicas de atenção à gestante, pois os hospitais públicos precisarão ter (na verdade, já deveria ter faz tempo) estrutura adequada para os casos de abortamento legal.
A ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança é ainda mais drástica, pois pode alterar o próprio conceito de vida, classicamente associado ao instante da fecundação. Se procedente a ADI, instituições científicas e indústrias ligadas à saúde podem viver uma fase de incremento.
No caso dos crimes ligados à crise fundiária brasileira, nunca se leva a julgamento apenas um assassino. O que se leva são décadas de ocupação irregular e criminosa da terra. Levam-se os grileiros, os posseiros, o tráfico de armas, as atividades lesivas ao meio ambiente, os Estados paralelos. Essa imensidão se senta no banco dos réus e aguarda. Porque cada julgamento é visto como mais um capítulo de uma mesma história, que se repete à exaustão.
Há um punhado de pistoleiros na cadeia, por crimes no campo. Mas, em todo país, não há um só mandante. Até ontem, havia um, a julgar pela opinião da maioria. O Pará tinha a primazia de ser a primeira unidade da federação a fazer um mandante responder por seus atos. Com a absolvição do réu, a conseqüência é reforçar, na mente dos envolvidos na questão, a idéia de que o status quo se mantém. A violência não é legítima, mas é eficaz. Para muitos, isso basta.
Ao mesmo tempo, a eclosão de mais um conflito na Reserva Raposa Serra do Sol coloca a questão fundiária mais uma vez na ordem do dia, em âmbito nacional. Os próximos dias serão de aparelhamento dos lados em confronto. Muitos pegarão suas armas — as palavras — e outros, desgraçadamente, pegarão em armas de verdade.
Direito não é brincadeira. Um julgamento não é brincadeira. Nunca se sabe as conseqüências que trará quando as portas do tribunal se fecharem.
Em tempo: Os crimes dolosos contra a vida são julgados pelo tribunal do júri, que é presidido por um magistrado de carreira, o qual conduz os trabalhos e lavra a sentença (por serem atos técnicos), mas que não tem poder de deliberar sobre a culpa ou inocência do réu. Por conseguinte, o polêmico resultado de julgamento deve ser atribuído a cinco dos sete jurados, todos eles leigos, membros da sociedade chamados a decidir, de acordo, estritamente, com sua íntima convicção. Este adendo é técnico, sem qualquer juízo de valor, e se destina ao esclarecimento de eventuais leitores leigos quanto ao Direito.
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