terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Incapacidade, inidoneidade

Ontem, o 5ª Emenda publicou uma postagem sobre a passeata pela paz, organizada por familiares e amigos do médico assassinado Salvador Nahmias. Em apenas três linhas, Juvêncio de Arruda se limitou a dizer que estavam presentes segmentos que não estão acostumados a manifestações desse tipo, numa clara relação dessa prática com as esquerdas. Quando li a postagem, já havia 22 comentários publicados e uma celeuma instalada.
Já falei várias vezes sobre a raiva que me dá a incapacidade de uns tantos de fixar o real foco do debate. Seja por má fé ou por limitação intelectual, desvirtua-se o conteúdo e se envereda por discussões, muitas vezes toscas e sem qualquer utilidade. No caso a que me refiro, o que se estabeleceu foi um ingrediente perigosíssimo da sociedade de nossos tempos: o ódio entre classes. De repente, começaram a chover críticas contra a elite e os ricos. Arruda fez uma intervenção oportuna, basicamente para reconhecer o direito dos manifestantes de se manifestar, mas pelo visto não deu muito resultado.
Há algum tempo, fez-se um estardalhaço no país por causa do roubo de um Rolex avaliado em 50 mil reais, do pulso de Luciano Huck, que escreveu na Internet um desabafo sobre a insegurança. O cantor Zeca Baleiro subiu nas tamancas e esculhambou Huck, culpando-o por carregar no pulso algo cujo valor alimentaria muitas famílias. Mesmo não vendo nada demais em Huck e sendo fã de Baleiro, dei razão ao primeiro. Afinal, não se trata do que eu tenho, mas de eu possuir o direito de usufruir do que tenho. Huck não era menos vítima por ser rico. Ele também conheceu a violência que é estar sob a mira de uma arma. Ele também poderia ter sido ferido ou morto. E, claro, tem todo o direito de se indignar com isso. Demais disso, não é culpa dele se as pessoas  pobres ou ricas  estão em perigo nas ruas.
Dito isto, considero indecente negar à classe média ou alta de Belém do Pará o direito de protestar, de se insurgir, de criticar o Estado pela insegurança que acomete a todos nós, e a eles, com muito mais patrimônio ameaçado. Boa parte dessas críticas inclusive falta com o dever de solidariedade humana, na medida em que havia muita gente ali amargando a dor de pessoas amadas mortas. Seus motivos e seus objetivos são justos e merecem toda a consideração.
Finalmente, uma movimentação como essa, ainda que pontual, surte algum efeito. Ou ninguém reparou na insistente propaganda do governo do Estado, falando sobre os novos 2.000 policiais que em breve estarão nas ruas? Considero ingênuo supor que a morte de Nahmias e a repercussão que trouxe não provocou nenhum efeito concreto no governo. É claro que sim, ainda mais se tratando a vítima de uma pessoa com trânsito nos mesmos meios de quem tem o poder decisório  a governadora e os parlamentares.
Respeitemos a dor alheia. E suas boas iniciativas. Não é uma menina bonita com um cachorro no colo, em plena passeata, que porá a perder a ideia. Pelo menos, é o que pensa este cidadão que adora ver a sociedade sair de sua inércia habitual.

4 comentários:

Anônimo disse...

Cara, é por isso que eu gosto do seu blog. Bom senso, lucidez e visão abrangente são suas marcas.

Infelizmente, algumas pessoas ainda se deixam dominar por idéias mesquinhas, pequenas, típicas de gentinha medíocre e egoísta.

É muito bom quando você compra uma briga dessas, toca o dedo na ferida e desmascara esses hipócritas inúteis!

Parabéns! Feliz Natal!

De um fã anônimo

Anônimo disse...

De fato, o protesto que começou em círculos de classe média alta se alargou para outros setores, com participação de movimentos sociais. A diretoria da Sociedade de Cardiologia também denunciou as causas da tanta violência em nosso Estado, de forma consciente.
Mas o paraense menos aquinhoado é refém de uma elite predadora, que circula sobre quatro rodas, automatizada, refrigerada, isolada do mundo real, e sangrento.
Essa elite é que produz a segregação social, navegando num mar de futilidades, indiferente ao caos, à guerra civil não declarada que já não faz diferença de sexo ou idade, entre suas vítimas. Essa elite que conhece a periferia na hora de dar sua cesta de Natal para aliviar sua consciência, que tem volúpia em comprar apartamentos de alto luxo, nem aí para o fato de que sua arquitetura é a predação de nosso patrimônio histórico e natural, num esbanjamento absurdo diante de uma cidade com alto déficit habitacional.
Por isso, sem negar o valor de Nahmias Salvador, a elite na rua soa falsa, debochada, até. Desprotegida ela não é.
Há um tremendo esforço policial para capturar os outros matadores do grande médico. Onde a elite circula, o policiamento é maior. Você mesmo denuncia o egocentrismo do belenense. Cá entre nós: o de elite é bem mais perigoso, não? E, citando você, postei um dia no Quinta um relato da ameaça que pairou sobre minha família, a bordo de um ônibus, na mira de um playboy que tomava satisfações com o motorista do coletivo. O rapaz, que dirigia uma picape vistosa, atirou no ônibus, e se foi, sem ser incomodado.
Não é ódio de classe, é a busca de um posicionamento lúcido, por esses que têm nas mão o destino do nosso Estado, mas não fazem caso disso.
Artur Dias

Anônimo disse...

Yúdice, assino em baixo o que você escreveu.

Arthur, você tem o direito de pensar assim.

Só repito, a violência tá que nem vaca no pasto pra elite, pobre, burguesia, proletariado. Com se diria se nós fossemos cariocas, ela tá pegando geral.

Yúdice Andrade disse...

Anônimo, agradeço sua avaliação tão positiva. Só pondero que não tenho a intenção de "desmascarar" esta ou aquela pessoa ou segmento social. Mas colocar o dedo na ferida sim. É colocando o dedo onde dói que levamos as pessoas a pensar sobre seus atos e idéias, dando-lhes menos oportunidades de escamotear, de fingir, de enganar. Volte sempre.

Artur, há muita verdade no que você diz. Existe, com efeito, uma elite predadora, que despreza quem tenha menor poder aquisitivo, que se acha superior e se caracteriza por uma enorme indiferença quanto ao semelhante, a começar pelo fato de não o considerar semelhante.
Contudo, não podemos generalizar. E se não posso distinguir quem vai às ruas para aparecer e quem vai com justas motivações, prefiro extrair da manifestação aquilo que ela tem de mais positivo. E não é pouco.
Não acho que a elite na rua seja um deboche. Penso, ao contrário, que justamente por ser uma elite e, como tal, ter-se habituado a deitar-se eternamente em berço esplêndido, sentir a necessidade de ir à rua é um fato significativo. Na pior das hipóteses, mostra-lhes que existe um mundo real e que, dentro dele, precisamos nos proteger e resgatar. Nesse momento, eles passam a querer a mesma segurança que os demais cidadãos.
Podemos continuar a debater.

É vero, Lafayette. Portanto, que acordemos todos.