Sinto-me um pouco constrangido em tratar de um assunto tão pesado em meio às festividades de final de ano, mas estou engasgado o suficiente para sentir uma certa urgência em escrever.
Em 3.10.2006 publiquei uma postagem sobre o filme brasileiro Anjos do sol, acerca da exploração sexual de crianças e adolescentes, sob escravidão. Como menciono com frequência, em minhas aulas, o crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, algumas pessoas me sugeriram ver o filme Tráfico humano, dentre elas o também blogueiro Fred Guerreiro, habitué aqui do blog.
Tráfico humano (Human trafficking, direção de Christian Duguay, 2005) é um longametragem (longa, mesmo: são quase três horas de duração) policial americano de ótima qualidade — elogio curioso, considerando que o meu mal estar começou nos primeiros minutos de exibição. Mas a assepsia do cinema americano nos permite assistir à película até o final, sem maiores danos.
Na trama, a agente federal Kate Morozov (Mira Sorvino), agindo sob as graças de seu superior Bill Meehan (Donald Sutherland), persegue uma poderosa quadrilha de tráfico de pessoas para fins sexuais, liderada por Sergei Karpovich (Robert Carlyle). Aqui aprendemos, sobretudo graças ao discurso final da protagonista e às legendas de encerramento, que o tráfico humano é a terceira atividade econômica ilícita mais lucrativa do mundo, perdendo apenas para o tráfico de armas e de drogas. É um ramo milionário, que se desenvolveu graças ao ocaso econômico do Leste Europeu, o que explica a nacionalidade do vilão e de boa parte das vítimas. O filme mostra, ainda, como tais redes criminosas são poderosas e disseminadas pelo mundo, fazendo vítimas na Ucrânia, em Praga, nas Filipinas — senha para que se deduza que atuam no mundo inteiro.
Vemos que embora haja um certo padrão na seleção das vítimas (mulheres que tentam obter empregos, principalmente carreiras de modelo, e usuárias de serviços de namoro pela Internet), elas também podem ser compradas às próprias famílias ou sequestradas, o que expõe qualquer um a risco — inclusive nossas filhas, numa aparentemente inofensiva viagem de férias.
É um filme que recomendo, com a advertência de que é daquele tipo de lazer que não nos deixa felizes quando acaba. Não sou crítico de cinema, por isso não vou além. Quem se interessa pelo tema, melhor assistir. Atrevo-me a dizer, contudo, que os vícios do cinema americano estão lá, tais como (Atenção: spoilers! Se não quiser saber o final do filme, não prossiga a leitura):
1. A protagonista trabalha na polícia como forma de superar um trauma de infância pessoal. Ela tem sucesso quando quebra regras ao invés de seguir o protocolo. O clichê "eu segui o meu instinto" está lá.
2. Os dramas familiares e as coincidências permeiam a trama, tornando-se em certos momentos cruciais para que o desfecho seja o que é. O roteirista apela inclusive para improváveis ataques de humanidade e consciência entre aqueles que estão do lado do mal.
3. O vilão morre no fim, em vez de responder por seus atos — uma catarse que costuma ser agradável ao grande público, sequioso da morte como castigo por excelência. Ela provoca uma catarse em nossa raiva, mas não elimina o problema em seu nascedouro. Para mim, esse foi um desfecho bastante insatisfatório, ainda mais porque o vilão morre debochando (suas palavras são "mesmo assim valeu a pena") e, apesar de já ter levado vários tiros, o de misericórdia tem que ser dado pela mocinha.
4. A tradição do cinema americano de poupar as crianças é parcialmente respeitada. Mas quem se dá bem mesmo é a menina americana. As crianças que não chegam a sofrer abuso sexual estão no seu entorno imediato. E à exceção da que tem o pescoço quebrado, não sofrem tudo o que se poderia esperar, no contexto.
5. O ufanismo americano marca presença através da personagem Annie Gray, a americana de 12 sequestrada em Manila, capital das Filipinas. Enquanto as vítimas locais entregam-se ao seu destino cruel, a americaninha assume uma posição de liderança e solidariedade, a ponto de tratar da saúde dos companheiros de infortúnio. Não fosse por suas ações, o seu grupo não seria libertado.
Enfim, mesmo bons filmes incorrem nesses pecados. Coisas de americanos. Nada que comprometa a qualidade do resultado.
Acréscimo em 14.1.2012: Que me conste, depois disso o tráfico humano se tornou a atividade criminosa mais rentável do mundo. Repugnante.
2 comentários:
Vi Tráfico Humano e A Outra recentemente com a namorada. Alugamos o primeiro por recomendação de alguma professora do curso dela (Relações Internacionais). Bem forte. E longo - não consegui ver todo o filme; perdi algumas partes do meio.
A Outra, por sua vez, foi a segunda reconstituição que vi da história entre Henrique VIII e a Ana Bolena. A anterior, feita para TV, me apresentou uma Ana "vítima", que teve de se sujeitar ao rei, que já havia se envolvido com sua irmã Maria, antes que pudesse se casar com o homem que gostava. Nela, Henrique foi vivido por um ator gordo. Depois que deu a luz a uma menina, Ana fez Henrique perder o sentimento que tinha por ela; o rei então, para poder se livrar de Ana, mandou executá-la "inventando" a acusação de incesto dela com o irmão, dentre outras.
Por isso, foi meio chocante eu ver o rei interpretado por um magro Eric Bana (pelo que vi depois, o rei só foi engordar morbidamente, como ficou conhecido em algumas pinturas, realmente mais tarde) e uma Ana fria, ambiciosa e calculista, querendo exatamente se envolver com o monarca. E que teria, sim, sugerido um incesto após abortar um filho de Henrique, o que não foi levado adiante por causa da vontade do irmão pouco antes da "hora H", em um misto de desespero e (minha interpretação) sua repulsa ao corpo feminino (fui averiguar depois e realmente, uma das acusações para a execução dele foi "sodomia").
Eu também não sabia que Henrique tinha tido o filho homem que tanto queria, mas com Maria, tendo-o renegado em seu momento de desejo incontrolável por Ana. Ainda não sei qual das duas versões corresponderia mais proximamente ao que realmente ocorreu...
Adorei os clichês que o sr apontou! hahaha! Bem, feliz ano novo ao senhor e a sua família, professor! Abraço
De acordo com o que andei lendo, o filme é bem mais próximo da verdade, exceto pela primeira parte, a respeito dos motivos que levaram Ana a ir para a França, bem como o tempo que ficou lá - ao todo, sete anos, ao passo que o filme fala em cinco meses quando decidiram chamá-la de volta. Poucos meses não seriam o bastante para ela mudar tanto sua personalidade. Ficou inverossímil.
Quanto ao mais, há rumores nunca confirmados, o que deixa o diretor do filme livre para suas licenças poéticas.
Grande ano para todos nós, Caio.
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