1. Leia a postagem seguinte antes desta.
2. Spoilers! Não leia o texto se não quiser saber detalhes sobre o final dos filmes comentados.
Tanto Tráfico humano quanto Anjos do sol tratam basicamente do mesmo tema: tráfico de pessoas para fins de escravização sexual. Algumas formas de cooptação das vítimas se assemelham. O funcionamento do esquema, graças à corrupção das autoridades, é inevitável. Todavia, os dois filmes apresentam universos completamente distintos, como se retratassem fatos ocorridos em planetas diferentes. Em que pese isso ser, quem sabe, decorrência da linguagem cinematográfica, penso que a diferença de objetivos dos diretores e o desenrolar das tramas atendem a fatores que têm a ver com as condições sociopolíticas dos países em que as histórias ocorrem. Vejamos:
1. Anjos do sol tem sua trama centrada num garimpo no Pará — sim, o Estado do Pará. Que lugar melhor para falar de trabalho escravo e exploração da prostituição infanto-juvenil? O esquema é mantido por um sujeito (Antônio Calloni) sem caráter, sem instrução e sem dinheiro, nada além de um pilantra do meio do mato. Quem o auxilia são pessoas como o senador vivido por Otávio Augusto, que compra meninas e depois as manda para o garimpo. O poder sustenta o crime, porque se locupleta dele, seja financeira, seja sexualmente. Em Tráfico humano, vemos um megaempresário, milionário e sofisticado, daqueles que vivem em colunas sociais. Um tipo insuspeito e que se considera acima do bem e do mal.
2. No filme brasileiro, a miséria é a causa, o pretexto e a condição para o fenômeno. Tudo no filme é miserável e degradante. Mesmo o personagem supostamente mais sofisticado, o senador, é um tipo bronco e desqualificado. As vítimas são meninas feias, de aparência tétrica, analfabetas e sem qualquer futuro. No filme americano, embora pobres, as vítimas moram em boas casas, estudam, são belas, têm dentes perfeitos e muitas oportunidades. São exploradas em prostíbulos, mas também em ambientes riquíssimos. Vemos pessoas em ternos elegantes e carros de luxo.
3. Na trama brasileira, as autoridades não tomam conhecimento do problema. Um agente de saúde que se depara com a situação se escandaliza, mas nada faz. As vítimas são invisíveis. Na americana, as meninas são coagidas pelo medo de que seus parentes sejam mortos Os criminosos dispõem de uma estrutura grandiosa. Mas as autoridades investigam o tempo todo e possuem recursos, financeiros e tecnológicos, de primeiro mundo.
4. As escravas sexuais brasileiras, no garimpo, atendiam a incontáveis homens imundos na mesma noite. No filme americano, eram em média 12 clientes por dia. Homens finos, limpos e até muito ricos. Não que isso mude a disposição deles para humilhar as mulheres, claro.
5. A testemunha americana ganha uma casa grande e bonita, com comida comprada e um quarto especialmente preparado para sua filha (apesar de morrer com um tiro certeiro na testa tão logo chega ao que deveria ser um esconderijo). No Brasil, quem acaba no programa de proteção a testemunhas não sabe se estaria pior fora dele.
6. No Brasil, falta tudo. Nos Estados Unidos, há pessoal de sobra, telas enormes de cristal líquido exibindo a movimentação financeira do investigado e tudo se resolve rápido.
7. Como resultado dos itens anteriores, as vítimas brasileiras estão fadadas à ruína. Serão assassinadas ou, se escaparem disso, morrerão graças às doenças que adquirirem. Se nada disso sobrevier, só terão um destino: permanecer na prostituição, como descobre a protagonista, na última cena. Seu único milímetro de sorte é passar a dispor do próprio corpo, sem ser mais explorada por um cafetão. Já nos Estados Unidos, fica claro que todas as vítimas têm esperança, como se comprova ao final, quando a grande maioria é liberta para uma nova vida, feliz e protegida. Até a jovem infectada por HIV terá melhores oportunidades.
8. A absoluta desesperança de Anjos do sol rivaliza com o final claramente feliz (no contexto, bem entendido) de Tráfico humano. Um paradoxo terrível, mormente quando não acreditamos que veríamos, no Brasil, alguma chance de justiça.
Se a vida imita a arte, creio que esses dois filmes demonstram razoavelmente a realidade de dois mundos. E, como sempre, saímos perdendo.
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