quarta-feira, 3 de junho de 2009

Muito pilantra e muito idiota

No final do ano passado, o irmão de um amigo meu comprou um automóvel, para o qual contratou um financiamento. Na contratação, o funcionário da financiadora, sem consultar o cliente, marcou um quadradinho no formulário, como se tivesse sido pedido um cartão de crédito. A famosa venda casada, prática tão cafajeste quanto corriqueira, jamais coibida pelas autoridades de defesa do consumidor.
O tempo passou e o rapaz certo dia recebeu um ligação da empresa operadora do cartão de crédito. Questionava se ele havia mesmo efetuado compras, praticamente no valor máximo do crédito que lhe fora concedido. O rapaz respondeu que jamais recebera o cartão e que, por isso, sequer poderia ter efetuado as compras. A empresa, decerto já prevenida, não criou caso: estornou a cobrança e foi atrás do prejuízo em outra porta: cobrou da empresa contratada para fazer a entrega dos cartões.
Qual não foi a surpresa do nosso personagem quando policiais civis, em postura arrogante e falando com voz forte (para criar o clima de constrangimento que eles parecem adorar), estiveram em sua residência para lhe entregar uma intimação, a fim de que fosse prestar esclarecimentos na Divisão de Investigações e Operações Especiais DIOE. Lá foi ele, ontem, enfrentar a situação. Chegando à delegacia, descobriu outras dez pessoas em situação semelhante, inclusive gente acompanhada de advogado (portanto, gastando dinheiro) e senhoras já de certa idade, muito nervosas e envergonhadas por terem sido convocadas pela polícia.
Resumo da ópera: sabe quem registrou ocorrência policial? O cara da empresa de entrega dos cartões. Cobrado pela operadora e alegando ter feito todas as entregas, o patife registrou ocorrência contra cada titular de cartão que alegara não o ter recebido. Ou seja, as vítimas! O descaramento era tanto que até o delegado riu, indignado com a desfaçatez de um indivíduo que, para comprovar as supostas entregas, apresentou protocolos de recebimento, todos com assinaturas quase iguais nenhuma conferindo com as dos destinatários.
Além de pilantra, querendo ganhar dinheiro às custas de danos graves a terceiros inocentes, o sujeito é um rematado idiota, que apontou uma prova contra si mesmo. A julgar pelo comentário do delegado, de que infelizmente não houve flagrante e por isso não pode prender o sujeito, deduzo que ele já foi de queixoso a encalacrado. Bem feito.
Estes são os nossos tempos...

2 comentários:

Frederico Guerreiro disse...

Meu sempre mestre e amigo Yúdice, receba esta minha humilde reflexão:
Não vejo constrangimento algum em ser intimado a prestar declarações à Autoridade Policial. O que pode ser é um sentimento pessoal de vergonha por se ver vítima de um criminoso ou contraventor; o que se entende por "ingênuo", um eufemismo para não usar termo popular.
O constrangimento, nesse caso, está claramente entendido como algo íntimo e pessoal, relativamente à posição que o testemunhante/intimado acha que tem perante a sociedade. Obviamente que não se trata, no caso relatado, do crime de constrangimento ilegal, pois nada há de ilegal em prestar declarações que auxiliarão na apuração do delito e sua persecução penal.
Ocorre que todo esse sentimento das pessoas intimadas pelo delegado decorre de uma cultura que compreende a atuação policial exclusivamente como um órgão do Estado encarregado de "perseguir" criminosos, enquanto que providências elucidativas podem ser bastante úteis como medida de prevenção de uma determinada conduta, e que para isso todos devemos colaborar indistintamente e incondicionalmente.
Esta semana, em decorrência de uma série de estelionatos praticados por aquele ex-corretor de imóveis, e já instaurado o inquérito a meu requerimento ao Delegado Geral de Polícial Civil (em março passado - porém ainda não concluído), o delegado intimou a oficial do cartório, que, inconformada, me informou que "não vai prestar declaração alguma" a respeito de escriturar irregularmente, em desconformidade com a lei, e em decorrência de crime de estelionato.
Olhe Doutora, disse-lhe, o fato de V.Sa. não querer atender à intimação da autoridade policial nada tem a ver comigo, trata-se de ação pública, e não posso fazer nada a respeito. Disse que "não vai prestar depoimento algum". Ora, o problema não está em se deve ou não prestar depoimento, pois isso é obrigatório, e, em caso de negativa, a lei dispõe dos meios necessários para coagir a testemunha a atender ao mandamento administrativo, mesmo que tenha de recorrer à Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado, órgão ao qual são vinculados os cartórios públicos.
No caso, trata-se de uma questão íntima e pessoal, de como a oficial se vê diante de uma situação excepcional, que lhe pode afetar a credibilidade como oficial de uma concessão pública. Mas daí ela se sentir constrangida por ter de ir uma delegacia (DIOE), devo dizer que o problema é mais dela, pois a sociedade agradece a participação de todos para a elucidação de crimes. Caímos aqui na velha história do "quem não deve não teme", e se esforça para judar na elucidação do crime.
Essa cultura de não colaborar com a polícia é um dos fatores que nos leva à impunidade. Ou seja: em vez de o cidadão agir e colaborar para reprimir um mal que ele mesmo sofreu, resolve por bem preservar a imagem que tem perante seus pares. Triste essa equação. Egoísta.

A propósito, que crime cometeu o funcionário da empresa de entrega de cartões? Tudo bem que são claras as implicações cíveis ontra a empresa, pelos danos causados aos consumidores. Mas e o sujeito. Há alguma previsão para ele que não seja o falso testemunho?

Abraço

Yúdice Andrade disse...

Caríssimo Fred, em momento algum me referi a constrangimento ilegal. Com efeito, ser chamado a prestar esclarecimentos perante a autoridade policial é um dos ônus de viver em sociedade, nestes tempos. Tu mesmo notaste que a palavra está empregada num sentido moral.
Pensa comigo: como se sentiria uma pessoa honesta, que sempre se preocupou em honrar todos os seus compromissos, ao ser convocada a se explicar num lugar que o imaginário coletivo associa ao que há de pior? Eu te digo com todas as letras: a pessoa se sentiria moralmente constrangida, sim. E tem todos os motivos para isso. Sempre detestei delegacias e olha que só entrei nelas como advogado e uma vez como vítima. Nesta, como vítima, foi o dia em que me senti mais constrangido - humilhado mesmo -, a começar pelo menosprezo com que fomos tratados.
Ninguém merece ir a uma delegacia, Fred, a menos que haja um bom motivo. Estamos tão cientes disso que, na apreciação de habeas corpus, frequentemente afirmamos isso: a existência de uma investigação pode não ser um constrangimento ilegal, mas ainda assim é um constrangimento real, por isso que só pode existir quando motivos relevantes o justifiquem. Aliás, é daí que vem a tal justa causa, que se soma aos demais pressupostos da ação penal.
Por isso, ainda que concorde contigo quanto ao dever genérico que todos temos de colaborar com as autoridades, ratifico as razões da minha postagem.
Um abraço.