Como professor, já escutei algumas histórias escabrosas e perguntas sobre questões bastante íntimas. Certa vez, um aluno me indagou se o sujeito flagrado transando com uma prostituta menor de idade estaria cometendo crime. A dúvida, disse-me, não era interesse pessoal dele, mas de um amigo.
Ponderei aspectos relacionados à letra expressa da lei e, mesmo sendo de opinião contrária a boa parte deles, ciente de que nossas autoridades adoram a lei cega e irracional, além de utilizar com frequência os cargos que ocupam para impor uma moralidade que elas mesmas não possuem, concluí que havia crime, sim. Que o amigo tomasse cuidado.
Mas eis que o Superior Tribunal de Justiça acabou de ratificar decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, rejeitando a acusação de exploração sexual de menores (art. 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente) nos casos de clientes eventuais do serviço de prostituição.
Na página do STJ, encontramos uma síntese do julgamento:
Segundo os autos, os dois réus contrataram os serviços sexuais de três garotas de programa que estavam em um ponto de ônibus, mediante o pagamento de R$ 80,00 para duas adolescentes e R$ 60,00 para uma outra.(1) O programa foi realizado em um motel. O Tribunal de origem absolveu os réus do crime de exploração sexual de menores por considerar que as adolescentes já eram prostitutas reconhecidas, mas ressaltou que a responsabilidade penal dos apelantes seria grave caso fossem eles quem tivesse iniciado as atividades de prostituição das vítimas.(2) O Ministério Público recorreu ao STJ, alegando que o fato de as vítimas menores de idade serem prostitutas não exclui a ilicitude do crime de exploração sexual. Acompanhado o voto do relator, ministro Arnaldo Esteves Lima, a Quinta Turma do STJ entendeu que o crime previsto no referido artigo – submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual – não abrange a figura do cliente ocasional diante da ausência de "exploração sexual" nos termos da definição legal.(3) Citando precedente da Turma, o relator sustentou que a hipótese em que o réu contrata adolescente já entregue à prostituição para a prática de conjunção carnal não encontra enquadramento na definição legal do artigo 244-A do ECA, pois exige-se a submissão do menor à prostituição ou à exploração sexual, o que não ocorreu no caso em questão. O STJ manteve a condenação dos réus pelo crime do artigo 241-B do ECA – adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente – por eles terem fotografado as menores desnudas em poses pornográficas.(4)
(1) Notaram? A menoridade das prostitutas era critério valorizador.
(2) Parece-me sensato não tentar ser mais realista que o rei. Se a mulher já exerce a prostituição, não será este ou aquele cliente que determinará a intensidade dos danos pessoais e sociais que justificam a incriminação da conduta. Se um recusa, muitos vêm depois. Portanto, o que realmente deve ser incriminado é a exploração, ainda que voluntária, da prostituição. Ou, como bem decidiu o STJ, a iniciação das meninas nessa atividade.
(3) Com efeito, quem adquire o serviço livremente oferecido pela prostituta não pode ser acusado de submetê-la à prostituição. Acho que até a semântica rejeita essa ideia.
(4) Precisava? Não reclamem.
E com isso, muitos amigos respiram aliviados.
6 comentários:
Amigo Yúdice, acredito que esse debate transcende questões de formalidade legal, fruto de um insepulto positivismo que ainda viceja nestas terras. Menor seja prostituta ou não é menor, as condições indignas a que estão submetidas, q as levam a vender seu corpo, por uma ninharia (R$ 80,00 e R$ 60,00) violenta os preceitos mais básicos de civilidade e condutas como essas n devem ser estimuladas em hipótese alguma,sobretudo pelo STJ. Penso no imperativo categórico Kantiano "age de tal forma que a tua conduta seja tida como universal". Peço permissão para recomendar ao amigo do seu aluno a leitura da metafisica dos costumes do kant, para combater esse relativismo moral. Sempre q posso acompanho o teu blog, adoro, abraços.
mauricio leal dias
A decisão é interessante, mais, pra mim, moralmente, o STJ está errado!
Abraço Yúdice.
E eu que acreditava que prostituição ainda era crime...
Se fosse assim, nesse caso o fato de serem menores seria um agravante, não?
(Nem é preciso dizer que sou completamente leigo no assunto, mas isso (esse situação colocada no post) moralmente, me incomoda!)
Em textos religiosos arcaicos, alguns dos quais muito nos influenciaram, a prostituição é culpa de quem se prostitui, ficando o cliente isento de culpa. Quase o mesmo vale para o estupro, se a mulher não se defender até a morte ela é quase que culpada do crime, principalmente se "motivou", de algum modo, o estuprador. Destas influências, volto a dizer, arcaicas, obsoletas, nós no Brasil nunca nos livramos. Aqui a lei é aplicada implacavelmente aos pobres, mas precisa ser necessáriamente humanizada quando em questão alquém que pode comprar a sua cidadania - defendo a tese de que aqui ela é mesmo alugada. Basta perder o emprego ou decair socialmente para experimentar isso.
O Brasil, desse povo alegre, que gosta de sexo, samba, de futebol e cerveja - mas que por conta da absoluta primazia destes interesses vive literalmente dans la merd, trabalhando para manter uma classe de 5% de privilegiados que dispões de 55% da riqueza do país - ainda vai demorar muito para se tormar um país de verdade. A nossa lógica ainda é a da casa grande e senzala.
Roberto Barros,
Caríssimo Maurício, é uma honra te ter entre os visitantes do blog. Espero que não faltem oportunidades de merecer as tuas ponderações.
Devo dizer que minha visão calejada nos meandros do Direito Penal, razão de eu ter me manifestado como me manifestei, não deve ser interpretada como desconsideração dos inúmeros e complexos fatores sociais que levam essas meninas à prostituição. Acima de tudo, sou muito solidário a elas e entendo que o poder público deveria promover ações efetivas de resgate dessas não-cidadãs. Aliás, não-cidadãos, porque precisamos incluir também os homens e os meninos, que chegam a ser recrutados ainda na puberdade para posterior remanejamento para outros Estados.
Voltemos a Kant, então.
No entanto, Lafayette, o STJ deve decidir moralmente? Um dos aspectos mais duros de nossa profissão não seria, justamente, compatibilizar o legal e o moral? Aliás, nada de novo nessa celeuma. Mas é um desafio cada vez maior.
Cléoson, realmente, prostituição não é crime. A criminalização da prostituição desapareceu da maioria das legislações ainda no século XX, mas subsiste a incriminação da exploração, felizmente. Outrossim, a legislação específica - no nosso caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente - contém normas que, se cumpridas, poderiam ser eficientes até para prevenir esse tipo de abuso.
Com efeito, é algo que moralmente nos machuca.
Brilhante, Roberto. É isso mesmo. Tenho um livro chamado "História do estupro", no qual se vê a opinião reinante sobre a moralidade sexual, implacável com as mulheres mesmo quando absolutamente inocentes, vitimadas por um dos piores delitos que se pode cometer. Era uma lógica insana (que tal a contradição em termos?), em que as pessoas que detinham o poder impunham uma moralidade aguda, mas se esforçavam por não compartilhar dela.
Hoje, os fatores econômicos são determinantes para a exclusão e a violência.
Yúdice, olha a posição da ONU sobre o assunto, que reforça a minha posição de q a decisão di STJ além repugnate contraria todo o sistema de proteção às crianças e adolescentes. Abs, mauricio leal
29/06/2009 - 08h55
ONU critica STJ por não punir sexo com menor
Em São Paulo
O Fundo das Nações Unidas para a Infância e Juventude (Unicef) criticou oficialmente a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na última semana, de manter a sentença que absolveu dois clientes por explorarem sexualmente crianças - sob o argumento de que se tratavam de prostitutas conhecidas.
O texto relata que os acusados eram José Luiz Barbosa, o Zequinha Barbosa (campeão mundial em 1987 na corrida de 800 metros rasos) e o ex-assessor Luiz Otávio Flores da Anunciação. O Unicef considerou absurda a justificativa do STJ para manter a decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.
"Por incrível que possa parecer, o argumento usado é o de que os acusados não cometeram um crime, uma vez que as crianças já haviam sido exploradas sexualmente anteriormente por outras pessoas", manifestou em nota a organização.
De acordo com o Unicef, a decisão surpreende pelo fato de o Brasil ter assinado a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 1990, que convoca os Estados a tomarem todas as medidas necessárias para assegurar que as crianças estejam protegidas da exploração sexual.
"Além disso, a decisão causa indignação, por causa da insensibilidade do Judiciário para com as circunstâncias de vulnerabilidade às quais as crianças estão submetidas. O fato resulta ainda num precedente perigoso: o de que a exploração sexual é aceitável quando remunerada, como se nossas crianças estivessem à venda no mercado perverso de poder dos adultos."
Na nota, o Unicef reitera que "nenhuma criança ou adolescente é responsável por qualquer tipo de exploração sofrida, até mesmo a sexual". Para a ONU, esse tipo de violência representa grave violação dos direitos à dignidade e à integridade física e mental de meninos e meninas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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