Há poucas semanas, tratei com meus alunos de Direito Penal II sobre o tema do crime continuado ou continuidade delitiva. Uma das questões elegantes que o assunto proporciona diz respeito à possibilidade, ou não, de estabelecer o nexo de continuidade entre um estupro e um atentado violento ao pudor — ambos delitos sexuais violentos, muito parecidos, variando apenas a espécie de ato libidinoso praticado.
Eis que ontem o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre o assunto. E disse não. Mas foi por maioria.
Estupro e atentado ao pudor não são crimes continuados
Por Filipe Coutinho
Atentado violento ao pudor e estupro não são crimes continuados. Por seis votos a quatro, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram, nesta quinta-feira (18/6), que quem pratica estupro e atentado violento ao pudor deve ter as penas somadas, já que os dois crimes não são da mesma espécie, embora sejam crimes sexuais.
O instituto do crime continuado prevê a aplicação de somente a pena de um dos crimes, ou então o agravamento de um sexto a dois terços do tempo de reclusão. Durante o julgamento, os ministros citaram diversos precedentes contraditórias nas turmas do STF. Assim, com o julgamento desta quinta-feira, o Supremo unificou o entendimento sobre a questão.
A maioria dos ministros acompanhou o voto de Ricardo Lewandowski. Para o ministro, estupro e atentado ao pudor são crimes diferentes. Além disso, nem sempre o atentado acontece como precedente ao estupro. “Mostra-se temerária que sempre o atentado seja um prelúdio ao coito vaginal. O coito anal não é precedente para a conjunção carnal”, disse Lewandowski. “É preciso ver cada caso, para ver se houve o desígnio de um ou mais constrangimentos.”
O voto de Lewandowski foi acompanho pelos ministros Joaquim Barbosa, Carmen Lúcia, Carlos Britto, Ellen Gracie e Celso de Mello. No mesmo sentido, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, defendeu que os crimes são diferentes. "É possível se reconhecer que o objeto é a liberdade sexual, mas não são crimes da mesma espécie", disse.
O relator do pedido de Habeas Corpus em que a questão era discutida, ministro Cezar Peluso, ficou vencido. Para ele, estupro e atentado são crimes continuados. Peluso citou um caso hipotético de alguém que, para roubar R$ 365, rouba R$ 1 por dia. “Não se pode condenar essa pessoa por 365 crimes no final do ano”, sustentou.
Em reposta à tese de Lewandowski, o ministro Marco Aurélio disse que não pode haver diferenciação quando a violência é feita pelo coito anal. Para Marco Aurélio, é a mesma coisa que uma preliminar ao estupro. “Não cabe a distinção entre preliminares e coito anal. Não tenho como afastar que são crimes da mesma espécie”, disse. Além do relator e Marco Aurélio, votaram pela continuidade dos crimes o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, e o ministro Eros Grau.
Segundo o Código Penal, estupro é o “ato de constranger mulher à conjunção carnal (vagina), mediante violência ou grave ameaça”. Atentado violento ao pudor é a ação de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Nos dois casos, a pena vai de seis a dez anos de reclusão.
No caso do HC 86.238, o réu Francisco Eriberto de Souza foi condenado, em 1998, a 27 anos de prisão. Caso o Supremo decidisse pela continuação dos crimes, além de reduzir a pena, Souza poderia recorrer à Justiça para pedir progressão do regime fechado para o semiaberto.
HC 86.238
2 comentários:
Yúdice, eu não sou militante do Direito Penal, mas é bom anotar nesta matéria que o Código Penal da Itália, que tanta influência histórica tem sobre o nosso ordenamento jurídico, desde 1996 não distingue mais o estupro (conjunção carnal) do atentado violento ao pudor, englobando todas estas condutas no tipo "violência sexual" (violenza sessuale, art. 609, bis).
Não será este um indicativo para o futuro de nossa legislação penal?
Boa tarde, bom fim de semana.
Na verdade, sim, CJK. A Lei n. 8.072, de 1990 (a famigerada Lei de Crimes Hediondos), ao equiparar as penas dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, gerou uma situação complicada e inconveniente, pois a conduta de passar as mãos nas nádegas de uma mulher, de surpresa, de modo que ela não pudesse defender-se, equipara-se juridicamente à penetração vaginal. O quantum da pena e as consequências de um crime hediondo se revelam altamente desproporcionais.
A melhor solução que se desenha para a questão é modificar a tipicidade do crime de estupro, passando a considerar como tal as agressões consistentes em cópulas (vaginal, anal e oral), deixando como atentado violento ao pudor as agressões sexuais que poderíamos considerar de menor porte. Neste caso, a pena seria algo menor e o delito não seria hediondo, preservando o princípio da proporcionalidade. Bem mais razoável.
Postar um comentário