domingo, 27 de setembro de 2009

"O bonde do funk agora é cultura"

Mas se liga aí novinha, por favor tu não se engane. Abre as pernas e relaxa. Que esse é o Bonde do Inhame. Que esse é o Bonde do Inhame. Esse é o bonde dos cria que enfogueta as novinhas. Esse é o bonde dos cria que enfogueta as novinhas. Vai na treta do Nem que a Kátia tá também eeemmm. Larga o inhame na Silvinha.


Essa letra edificante é exemplo tosco de um funk o ritmo oficializado na terça-feira como "manifestação cultural" no Rio de Janeiro. Na Assembleia Legislativa, o funk saiu enfim da "tutela da polícia" e passou para o campo da Cultura. Agora, é ilegal a repressão policial aos bailes.
Eu não conhecia o "Bonde do Inhame" até uma semana atrás. No engarrafamento do Túnel Rebouças, no Rio de Janeiro, um motorista sem camisa fazia ecoar o batidão pelas janelas escancaradas. O asfalto tremia. Quem tinha criança no carro despistava para não traduzir "enfoguetar as novinhas" ou "ir na treta do Nem" chefe do tráfico na Rocinha. A letra fazia apologia do tráfico, das drogas e da pedofilia.
Antes que os amigos do funk, os deputados, os acadêmicos e os jornalistas do funk digam que sou de elite e não gosto de "som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado" ("Som de preto", de Amilcka e Chocolate), queria dizer que nada tenho contra o funk popular e inocente. Tocado sem encher o ouvido alheio.
Entendidos dizem que o funk nasceu do cruzamento da cultura pop e da música negra americana com o cancioneiro popular nacional. "Existe muito preconceito. Acham que funk é coisa de favelado e estimula violência e consumo de drogas", diz a antropóloga Adriana Facina.
Minha manicure vive na Rocinha. É mãe de uma menina de 9 anos. Perguntei o que ela acha da lei que torna o funk um movimento cultural.
"Cultura? É obscenidade, isso sim. Aqui em casa meus filhos estão proibidos de escutar ou cantar funk. As letras são pornográficas. Fico impressionada com mãe que a deixa a filha ir nos bailes, de shortinho, top, tudo de fora, sainha sem nada por baixo. No fim dos bailes, todo mundo doidão, porque tem droga livre, botam funks pesados. Tem baile de domingo pra segunda até 7 horas, como se ninguém trabalhasse."
Queria ver os intelectuais do asfalto morando ao lado de uma quadra com o pancadão virando a madrugada. Se a elite tem direito à Lei do Silêncio, por que os pobres têm de ficar surdos?
Para proteger minha amiga, não posso publicar seu nome. Todos têm medo. Mas, não é cultural? Quem desvirtuou o funk foram os chefes dos morros, não a sociedade civil. Eles se apropriaram de um ritmo legítimo. Hoje, muitos favelados associam funk a bandidagem.
Injusto generalizar. Mas quem fala não é elite. É mãe, trabalhadora, sem coragem de apoiar publicamente a repressão aos bailes. Qual seria o resultado de um plebiscito anônimo nas favelas?
Recebi letras chulas por e-mail. "Ela vira de frente e vem assim, ...Vem x...eca, vem x...eca, bem gostosinho. Ela vira de costas, ô, empina pra mim, ô e vem assim. Vem c...inho, vem... (voz de menina) Você quer meu c...? Você quer minha b...? (repetida ad nauseam).
O funk diz sofrer o preconceito que o samba já enfrentou. É sacrilégio comparar o samba com letras de mulher-fruta e créééu.
O lobby da periferia terá de recuperar a imagem do funk nas comunidades. Adianta só condenar nos microfones quem incita os crimes? Os líderes do movimento precisam expurgar quem demoniza os bailes. Um dos autores da lei que tira o funk das sombras, o deputado Marcelo Freixo (PSOL) sugere que o ritmo seja "instrumento pedagógico nas escolas". Propõe "oficinas profissionalizantes de DJs".
Não faz sentido mesmo vetar um gosto musical. Ou fechar os olhos a um fenômeno que movimenta R$ 10 milhões por mês no Rio e gera milhares de empregos, segundo a Fundação Getúlio Vargas. Mas que se instalem banheiros químicos, câmeras e isolamento acústico, que se proíbam os proibidões. Que se controlem horários. E se fiscalize o consumo.
Eu queria que inhame fosse uma raiz. Que os bondes fossem aqueles sobre trilhos. Que as novinhas continuassem a ser meninas. E que Nem não passasse de um advérbio de negação.

Ruth de Aquino
diretora da sucursal de Época no Rio de Janeiro
(Coluna "Nossa antena", página final da revista Época de 7.9.2009)

2 comentários:

Anônimo disse...

Estas questões implicam na compreensão daquilo que se convencionou chamar de cultura de massas, quando o conceito de cultura voltado ao refinamento passa a ser associado ao divertimento e ao mercado. Sem querer entrar no mérito da acessibilidade de bens culturais (hoje compramos Beethoven, Joyce e Machado de Assis nas bancas de revistas) é necessário chamar a atenção para o carater extremamente autoritário da "cultura popular" da industria de entretenimento. Ela se sobrepõe a toda outra forma de manifestação cultural possível, precisamente por ser "popular", da maioria - no Brasil, pobre, explorada, viciada, intolerante e extremamente restrita. Enqaunto isso os promotores e os políticos.....

Yúdice Andrade disse...

Das 21h42, a questão que você coloca é das mais relevantes: os indivíduos que vivem nesse universo se colocam o tempo inteiro como vítimas de preconceitos, das elites, da incompreensão, mas impõem uma aceitação ainda mais violenta e intolerante do que qualquer rejeição que sofram. Como se vê pelo fato de que nunca lhes falta espaço na mídia. Muito pelo contrário.
Grato pela contribuição.