Imagine que você tenha chegado ao fundo do poço. Sonhou toda a vida em ser escritor e conseguiu escrever um livro maravilhoso, que todos pensam ser obra de outra pessoa, esta sim levando todos os louros. Escreveu também um segundo livro, ainda melhor, porém atingido por críticas fulminantes e mentirosas, de pessoas que o odiavam. Tornou-se uma vergonha literária.
A mulher que você ama se casou, por conveniência, com um homem extremamente rico, um bon vivant, justamente o homem que se beneficiou do seu livro e que vem a ser o seu protetor, plenamente ciente do que fazia quando a pedira em casamento.
Você foi abandonado por sua mãe ainda na infância e ela o fará de novo, na idade adulta. Seu pai, bêbado e abusivo, foi assassinado na sua frente.
Arruinado, desempregado e endividado, você descobre que as dores de cabeça intensas que sofria há meses são provocadas por um carcinoma cerebral intratável, que lhe dará apenas alguns meses de vida — e você se recusa a morrer, pois acredita ainda ter muito a fazer. Se bem que, em dado instante, a ideia do suicídio aflora muito nítida em sua mente.
Nesse momento de desespero, um homem misterioso surge e lhe oferece uma fortuna, em troca de um livro que deve mudar o mundo: um livro que institua uma nova religião, faça surgir na alma das pessoas uma fé forte o bastante para que elas aceitem matar ou morrer em nome dela.
Falo de O jogo do anjo, o mais recente trabalho do escritor catalão Carlos Ruiz Zafón, de 45 anos, autor de outros seis títulos, publicado no ano passado e, aqui no Brasil, pela editora Suma de Letras.
O livro é espetacular e prende do princípio ao fim, o que motivou o incremento do meu novo hábito de ler enquanto dirijo. Trata-se de uma trama de suspense e mistério, mais suspense que policial, misticismo incluído, com aquele ar soturno que agradará os apreciadores do gênero. Acima de tudo, uma impecável criação de personagens redondos, muito bem explorados.
Penso que um bom livro se caracteriza por fazer o leitor se importar de verdade com os personagens, como se fossem pessoas reais. E isso Zafón consegue. Apesar da linguagem leve e ágil, ele consegue contar uma história longa, que se desenvolve por quase quarenta anos (considerando um salto de 15 anos no epílogo). Antes da metade do livro, muita coisa já aconteceu e os personagens já têm um passado a ser considerado.
Críticos mais marrentos identificarão clichês e maneirismos dos filmes de ação, ideia que pode ser reforçada pelo fato de Zafón morar atualmente em Los Angeles e trabalhar, justamente, como roteirista de cinema. Mas esses deslizes, digamos assim, são muito pontuais, ocorrendo talvez em três ocasiões, num livro de 410 páginas. Perdoável de todo, considerando todo o mais que ele nos oferece. A certa altura, você se pega duvidando do que leu; já não sabe se está diante de um romance sobrenatural, de um típico drama policial ou da narrativa de uma conspiração. A dúvida só é saciada nas duas últimas páginas, quando o mais controverso de todos os personagens — Andreas Corelli — admite a sua verdadeira natureza e proporciona um final surpreendente.
Resultado? Emendei a leitura de O jogo do anjo com a de A sombra do vento, obra mais famosa de Zafón, que desponta como um dos grandes nomes da literatura atual. Este segundo livro, escrito na verdade sete anos antes, tem como protagonista um personagem que, em O jogo do anjo, é apenas mencionado, pois ainda é uma criança de 4 anos. Zafón recorre, assim, à simpática técnica de repetir personagens em obras independentes, mas sem o apelo de criar superinvestigadores, seja um clássico Hércule Poirot, de Agatha Christie, seja um inusitado Robert Langdon, de Dan Brown. É apenas a criação de personagens que acabam tão ricos que não cabem num livro só.
Altamente recomendado.
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