sexta-feira, 11 de julho de 2008

Discutir de verdade o abortamento

O amigo André Coelho, filósofo de mão cheia, professor como eu, escreveu a respeito da penúltima postagem, sobre o arquivamento do projeto de lei que descriminalizava o abortamento. Com um texto desses, ele já não pode ser chamado de comentarista, e sim de articulista do blog. Até afanei e editei uma fotografia do Orkut para fazer o H (mas posso deletar, se ele preferir). Eis, então, com o devido destaque, o que ele escreveu:



Sou favorável à descriminalização do abortamento. O assunto, bem sei, é polêmico. Os argumentos de um lado e de outro abundam e deixariam qualquer observador imparcial seriamente confuso e indeciso. Sinceramente, gostaria que o tema fosse amplamente debatido, que alcançasse uma decisão após longa e informada discussão. Por isso, quero comentar sobre um ponto mais específico. O ponto segundo o qual o abortamento é inconstitucional. Sobre isso gostaria de dizer que:

1. Se, de fato, o argumento usado para fundamentar essa alegação de inconstitucionalidade foi a suposta violação do direito à vida, então não é claro por que as duas hipóteses de abortamento legal já previstas não seriam igualmente inconstitucionais. Afinal, se se assume, sem maior discussão, que o feto nos primeiros meses de formação é dotado de vida (fato biologicamente incontestável, mas eticamente discutível) e se se assume, também sem maior discussão, que todo abortamento é uma violação à vida do feto (fato também biologicamente inconstestável, mas juridicamente discutível), então não há nenhuma razão para que os dois tipos legais de abortamento não sejam tão inconstitucionais quanto se alega que seria o tipo proposto.

2. O raciocínio segundo o qual toda violação ao direito à vida é inconstitucional é tão despropositado que poderia ser comparado com um raciocínio pelo qual as penas privativas de liberdade fossem consideradas inconstitucionais por serem violações do direito à liberdade. Nenhum direito, por mais "sagrado" que se apresente ser, é absoluto a ponto de excluir de cara qualquer hipótese legítima de violação. Se assim não fosse, por que matar seria aceitável na legítima defesa e no estado de necessidade? Por que a pessoa teria o direito de não ser submetida a tratamento médico contra a sua vontade? A vida, como qualquer outro dos direitos fundamentais, tem um âmbito de validade que precisa ser determinado de acordo com os outros valores e direitos com os quais se confronta.


3. A meu ver, tanto a proibição quanto a autorização do abortamento são constitucionais. Se de fato se assumir que o feto nos primeiros meses de formação é dotado de vida (do que discordo) e se de fato se assumir que o abortamento é uma violação do direito à vida do feto, então a questão não é concluir diretamente, sem maior discussão, que tal violação é inconstitucional, visto que há no ordenamento jurídico outras violações ao direito à vida que nem por isso são inconstitucionais. A questão é discutir sobre se, no caso dos pais que decidem pelo abortamento, tal suposta violação do direito à vida seria suficientemente justificada.

Como disse, sou favorável à descriminalização, mas não sou desses que acham que todo argumento contrário ao abortamento é apenas um monte de preconceitos religiosos de pessoas cujas idéias seguem presas a um passado medieval. Pelo contrário, acho muitos argumentos contra o aborto bastante bem estruturados e aceitáveis, embora, no fim das contas, prefira os argumentos do lado oposto. Gostaria de ver uma discussão esclarecida sobre isso, um debate nacional em que a própria sociedade pudesse rever suas posições habituais e se perguntar que tipo de tratamento devemos dar à questão à luz das nossas melhores crenças morais. Se, após um longo debate, meu lado saísse perdedor, ok, fazer o quê?, democracia é assim mesmo. Mas o que me angustia é que esse debate seja simplesmente bloqueado antes de ocorrer, que sofra esse constante "abortamento" sob argumentos que são para lá de discutíveis. Por isso quis expressar minha posição a respeito.

Pessoalmente, como já disse mais de uma vez, sou contrário ao abortamento estritamente voluntário, mas hoje tenho uma postura flexível em relação a essa difícil decisão, por razões de interesse médico, inclusive naqueles casos que as pessoas, frequentemente por má fé, rotulam de abortamento eugênico.
Mesmo sem concordar integralmente com o mérito das ideias do André, os argumentos — como se poderia esperar de um filósofo — são lúcidos e extraordinariamente bem postos. E estão expostos a sua apreciação.

PS — Não deixe de ler a caixinha de comentários, onde nos foi oferecida uma análise sobre os sentidos biológico e moral de vida.

5 comentários:

Anônimo disse...

Quando, no nosso vaidoso e nem sempre devidamente solidário universo intelectual dos professores, se recebe uma deferência dessa natureza, é normal que faltem as palavras para agradecer. Sem medo de soar piegas, gostaria de enaltecer esse gesto de amizade e de reconhecimento da parte de meu amigo Yúdice, que me honrou com a concessão de parte do seu espaço cotidiano de expressão de idéias. Não me oponho à foto, apenas lamento que ela não seja mais apresentável, o que ocorre, evidentemente, por culpa exclusiva do retratado.

Para levar o assunto adiante, gostaria de esclarecer um ponto do que eu escrevi que agora, lendo o comentário com a dose reforçada de ênfase que o Yúdice emprestou a ele, não pude deixar de notar. Referi-me mais que uma vez à convicção de que o fato biológico de que o feto nos primeiros meses de formação é dotado de vida não significa, instantaneamente, que seja titular de um direito à vida ou mesmo que seja de fato um ser vivo em sentido moral. Como percebi que a afirmação, feita assim sem maior esclarecimento, parecia obscura e poderia até soar absurda, concluí que devia me fazer mais claro a esse respeito.

O fato de que certo ser tem vida parece, à primeira vista, um fato exclusivamente biológico. A partir do momento em que o ser em questão apresenta certas características, notadamente, segundo as últimas crenças darwinistas em voga, a capacidade de produzir e passar adiante seu material genético, deveria ser considerado um ser vivo. Aparentemente, ser um ser vivo é alguma coisa assim como ser uma mesa, como ser composto de H2O ou como estar em repouso. Satisfeitas as condições tais e tais, o ser em questão seria, então, reconhecido como vivo.

Mas não é assim. A própria definição biológica do que é um ser vivo, como toda definição em ciência, serve a certos propósitos pontuais. Basicamente, leva em conta o pano de fundo da teoria evolucionista pós-darwiniana e atende ao objetivo, próprio dessa teoria, de definir o ser vivo de tal maneira que ele já seja visto como hospedeiro temporário de um material genético que será repassado à sua progênie, sendo a luta pela sobrevivência entendida como luta pela máxima preservação desse material genético ao longo das gerações. Portanto, não é uma definição metafísica, enunciação da própria essência do que significa ser um ser vivo. É, na verdade, uma definição operacional de ser vivo, funcional para os fins da pesquisa biológica e adequada aos referenciais teóricos que inspiram essa pesquisa.

Ora, se aquela definição se justifica perante os fins próprios da biologia, não há qualquer razão para que seja simplesmente transferida, de modo automático e acrítico, para outros campos que não partilham dos mesmos propósitos nem dos mesmos referenciais teóricos. Porém, quando se diz que, devido ao fato de o feto já apresentar a dinâmica biológica típica do ser vivo, ele "ipso facto" é um ser vivo em sentido moral (quer dizer, como titular de um direito a vida que deve ser assegurado contra violações), se comete exatamente o erro de fazer essa tranferência de modo pouco reflexivo.

Isso porque o domínio moral não é nem tem por que ser determinado pelos cânones do domínio biológico. Por exemplo, do ponto de vista biológico, pessoas que não têm os mesmos pais não são irmãos e pessoas que os têm sem dúvida o são. No entanto, do ponto de vista moral, filhos de pais distintos criados e crescidos juntos, podem perfeitamente ser irmãos, enquanto que filhos dos mesmos pais, crescidos e criados separados, só muito fracamente podem ser chamados de irmãos. A noção de "ser irmão de", que tem raiz biológica, não precisa, quando passa ao domínio moral, seguir atrelada ao critério biológico que originalmente a define, porque "ser irmão de" em sentido moral tem um signifciado diferente de "ser irmão de" em sentido biológico. O mesmo se passa com "ser pai de", "ser mãe de", "estar morto", "estar doente" etc.

Tal como, no domínio biológico, os termos são definidos de acordo com os fins e referenciais próprios daquela área do saber humano, da mesma maneira os termos no domínio moral, em que os fins e referenciais são outros, devem ser definidos em conformidade com os fins e referenciais da área em questão. Por isso, nada impede que os conceitos de "estar vivo" em sentido biológico e de "esta vivo" em sentido moral não coincidam perfeitamente em seus âmbitos de referência (embora seja esperável que coincidam pelo menos em parte).

Entenda-se bem: o que quero dizer não é que, uma vez que se reconheça que, na discussão do abortamento, é preciso definir se o feto "está vivo" em sentido moral, e não em sentido biológico, torna-se inevitável reconhecer que, em sentido moral, ele ainda não está vivo (que é a minha opinião), mas apenas que, reconhecida essa necessidade de definir o "estar vivo" em sentido especificamente moral, o argumento biológico passa a não ser mais decisivo, ou pelo menos não ser mais decisivo sem o socorro de outros argumentos de natureza não biológica, ou seja, morais. O que quero mostrar é apenas que o raciocinio simplista de "se há evidência (biológica) de vida, logo deve haver respeito (moral) pela vida" é um erro.

Se, no debate em torno do abortamento, existem argumentos capazes de mostrar que fetos são seres vivos (e eu, embora discorde dessa posição, reconheço que há muitos bons argumentos nesse sentido), esses argumentos são morais, e não biológicos. Pode-se dizer, por exemplo, que o fato de o feto ser um ser humano em potência, ou o fato de haver a expectativa de que se torne um ser humano pleno, ou o fato de que já seja ou possa vir a ser objeto do afeto humano dos pais (biológicos ou não biológicos) etc. lhe confere um valor moral. Esses, e outros mais, são argumentos (plausíveis, inclusive) em favor da idéia de que fetos são seres vivos, mas não são argumentos biológicos, e sim argumentos morais. Não se trata do fato empírico X ou do atributo (genético, anatômico, fisiológico etc.) Y que define se o ser em questão é ou não é um ser vivo. Trata-se, isso sim, de determinar se, em sentido moral, existem boas razões para tratar o feto como um ser vivo e, se as há, quais são elas.

Isso faz com que a afirmação de que o abortamento implica na morte de um ser vivo não possa ser o ponto de partida do debate, mas seja ela mesma um dos objetos do debate. Antes de usar o vocabulário fúnebre de "matar" e "morrer", é preciso decidir se o ente em questão está vivo, não em sentido biológico, mas sim em sentido estritamente moral.

Acredito que, dessa forma, tenha me feito mais claro.

Abraços a todos!

Yúdice Andrade disse...

Manter uma discussão nesse nível,
André, é um deleite para mim. Ou um sonho realizado. Só espero que outras pessoas participem, mas suspeito que muitos fiquem receosos de fazê-lo - como nossos alunos, que temem até perguntar em sala de aula quando, na verdade, não deveriam perder a chance.

Anônimo disse...

Yúdice, seria de fato uma pena se outras pessoas, por timidez ou por excesso de pudor intelectual, deixassem de participar dessas nossas discussões. Mas prometo que, se perceber que meus comentários inibem novos comentários às mesmas postagens, cuidarei para que essas intervenções se tornem menos freqüentes e/ou menos longas. Abraços!

Polyana disse...

André, peço a você que não ouse nos privar dos seus comentários, por favor! Acho que a expressão deleite também se estende a mim quando leio suas idéias, e não raro tenho que relê-las para saber se estou mesmo captando a mensagem, mas o esforço sempre vale a pena.
Na situação gravídica em que me encontro, não me sinto capaz de falar sobre abortamento, pois todo e qualquer comentário meu seriam altamente influenciados pelo momento que vivo agora.
Minha posição oficial sempre foi de ser contra o aborto, e a favor da escolha. Mas confesso que, depois de vivenciar o milagre da gestação em mim, não sei se conseguirei seguir nesta opinião, pois para mim, nunca faltaram motivos para querer e desejar o filho que carrego. Então eu simplesmente - agora - não consigo fazer o exercício de me colocar no lugar de uma grávida que queira ou precise interromper sua gravidez, ou entender o quão fortes possam ser estes motivos para ela.
Mas quem sabe daqui a alguns anos eu possa abstrair a minha condição de mãe diante de uma dicussão como essa. Aguardo vocês lá.
Abraços

Anônimo disse...

Polyana, fico contente e lisongeado com o seu elogio, ainda mais quando a palavra "deleite" é novamente empregada associada a leitura das coisas que escrevo. Lamento se, às vezes, a forma como exponho as idéias causa alguma dificuldade ao leitor, mas não o faço de propósito, pode ter certeza. Definitivamente, na sua condição gravídica, não se pode cobrar uma tomada de posição distanciada. Basta, para mim, que você saiba, como mostrou que sabe, que nem toda gravidez é vivenciada da mesma forma que a sua. Mesmo que você não seja, no fim das contas, a favor do abortamento, as mães que cogitam essa hipótese pelo menos já estão sendo levadas em consideração e compreendidas. Procurarei continuar postando comentários, mas cobre do Yúdice que continue escrevendo, levantando temas e alimentando essas discussões saudáveis. Abraços, parabéns pela gravidez, boa sorte no nascimento iminente e boa maternidade em todos os aspectos e momentos da vida dessa nova companheirinha no mundo.