sábado, 12 de julho de 2008

O nascimento de um flanelinha

Ainda não eram 9 da manhã de hoje quando estacionei meu carro na feira da Tavares Bastos, junto a uma lojinha de conserto de bicicletas onde procurava um serviço. Fui abordado por dois flanelinhas. Um, adulto; o outro, uma espécie de trainee (inflexão irônica, por favor), devia ter em torno de 5, 6 anos. Nunca soube avaliar idade de criança e, como os fatores nutricionais interferem, vou arriscar essa como sendo a idade do garoto, que estava lá, com a flanela devidamente presa à mão, já com todos os trejeitos.
Os dois vieram como se fôssemos velhos conhecidos. O adulto me deu um "bom dia" simpaticíssimo. Quando abri a mala do carro, o menino disse "pega esse pneu aí" (o que eu levara para conserto). O adulto respondeu "claro". Estavam em fina sintonia.
Durante os 10 minutos que fiquei parado, esperando o meu servicinho ser concluído, observei que o adulto efetivamente instruía a criança sobre o que fazer. Abri o carro para pegar um objeto e o menino desatou a assoviar histericamente: chamava o companheiro. Relaxaram quando me viram trancar o automóvel de novo. Em dado momento, um rapaz foi sair de motocicleta e o menino passou correndo. Chegou a ser atingido de leve pelo pneu, mas não deu a mínima. Podia ter sido atropelado de verdade, pois como toda criança corre para todos os lados, sem dar a menor atenção. O rapaz da moto ficou visivelmente assustado, por um tempo sem saber o que fazer. Se, como dizemos em Direito Penal, precisamos demonstrar que a situação da criança envolve perigo concreto, o perigo aconteceu de fato.
Terminado o meu assunto, fui embora. Contrariado como sempre nessas horas, dei 50 centavos ao flanelão, que me agradeceu com um "Deus abençoe o senhor". Jamais daria dinheiro para o menino. Aliás, fiquei aborrecido comigo mesmo, por não ter perguntado a ele qual sua idade e confrontado o adulto sobre o que estava fazendo. O comodismo do brasileiro prevaleceu em mim.
Pouco depois, passei de novo pelo local, agora de bicicleta. Propositalmente devagar. Escutei o menino dizer que alguém havia dado mais de um real e o adulto não estava repassando a parte dele corretamente. O cara riu e respondeu: "Tu és muito malandro!"
É, naquela idade o sujeito já deve ser bem malandro, mesmo. O que será quando for mais velho?! Por necessidade ou não, assisti esta manhã ao surgimento de um novo flanelinha, devidamente qualificado para a função. Ou talvez até mais do que isso: posso ter visto o nascimento de uma escola de formação de flanelinhas!
É isto que estamos legando a nossas crianças.

2 comentários:

Anônimo disse...

Já que fui tão bem recebida no último comentário, vou me aventurar por aqui também, já que, tal como a condição das mulheres, o tema relacionado aos flanelinhas sempre me interessa! :)

Nem vou me ater ao fato da criança, porque acho que já foi dito tudo. Criança nas ruas vendendo chicletes, fazendo acrobacias no sinal, lavando o vidro do carro, etc, é sempre absurdo e revoltante.

Não gosto de ser simplória e ignorar que há uma questão social gravíssima por trás de todos os trabalhadores informais, que por ventura avancem sobre o direito dos outros habitantes da cidade, como os camelôs (que tomam nossas calçadas) e os flanelinhas (que ignoram o fato de que pagamos os impostos relativos ao carro e podemos estacionar em qualquer local que não seja proibido).

Esses últimos, porém, me tiram do sério. Sinto-me verdadeira humilhada e extorquida, por saber que não tenho a liberdade de negar e sair ilesa. O que vejo, na realidade, é uma "legalização" (ou no mínimo tolerância) de uma ameaça/extorsão tácita. Sabemos muito bem a mensagem: ou lhes damos alguns trocados ou nosso carro será riscado, amassado ou arrombado. Em algumas situações mais graves, podemos até mesmo ser agredidos!

Por esse motivo, confesso que não consigo ter muita simpatia pela "classe", apesar da consciência de que entre alguns meliantes existem muitos homens de bem, com família e filhos que tiram dali o seu sustento.

Creio que esse seja um dos reflexos mais perversos da miséria: fazer com que seres humanos se brutalizem de tal forma, a ponto de matar, roubar ou ainda, no contexto do tópico, agredir alguém que lhes nega umas moedas (que não lhe são de direito). É difícil ser simplório.

Abraços,

Luiza Montenegro Duarte

P.S.: Professor, desculpe se disse alguma atrocidade referente ao Direito Penal. Confesso que não me foi uma das matérias mais encantadoras. Talvez se me tivesse sido dada a honra de assistir uma aula sua, isso seria diferente. :)

Yúdice Andrade disse...

Foi calorosa e merecidamente bem recebida no blog, sem dúvida, Luiza. Espero que volte sempre.
Você não disse qualquer atrocidade, seja quanto ao Direito Penal, sejam quanto a outra abordagem. Estamos de acordo, inclusive quanto à sensação de invasão, de extorsão no relacionamento (se é que se pode chamar assim) com flanelinhas.
Se um dia quiser visitar uma aula minha, fique à vontade. Portas abertas. Um abraço.