quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Estoura no plantão

Alguns anos atrás, advoguei para o Sindicato dos Médicos, inclinando-me, como é previsível, para uma orientação e assistência em questões ligadas ao Direito Penal. É cada vez maior o número de acusações contra os profissionais de saúde, inclusive em situações nas quais salta aos olhos que os mesmos não mereciam qualquer acusação. Já naquele momento ficou claro, para mim, que as mazelas da saúde (principalmente da pública) são muitas, mas a corda vai mesmo estourar nas costas do médico que estiver de plantão no momento de um incidente. Para muitos, isso é, literalmente, estar no lugar errado na hora errada. Mas como esse lugar errado é o local de trabalho de um profissional, ele acaba não tendo muito como se defender.
Refletia sobre isso ontem, quando via a reportagem sobre a morte dos dois bebês, alegadamente por omissão de socorro, na Santa Casa de Misericórdia. O fato resultou na ida forçada da obstetra de plantão à delegacia de polícia, para prestar esclarecimentos. Ela deu sorte de que omissão de socorro é uma infração de menor potencial ofensivo. Fosse em outros tempos, poderia ter sido presa. Mas uma coisa não mudou: o pré-julgamento. A delegada responsável disse que tudo indica ter havido mesmo omissão de socorro. Curiosa e contraditoriamente, porém, em seguida falou que o conhecimento dos fatos depende dos laudos necroscópicos. E depende mesmo. Se, por hipótese, a perícia confirmar a versão já suscitada de que os bebês nasceram mortos, a omissão de socorro seria materialmente impossível (a menos que tivessem morrido in utero no período em que a família peregrinou em busca de atendimento).
Para complicar, a médica afirmou que não estava de plantão e mesmo assim atendeu a paciente, só não autorizando a internação por ausência de leitos, sendo que a então presidente da casa de saúde, afastada ontem, confirmou que havia uma orientação nesse sentido, tratando-se portanto de deliberação da administração superior, não dos médicos. Fica difícil falar em omissão da obstetra, nesses termos. Mas foi ela que acabou na delegacia, sendo filmada.
Esclareço que não conheço nenhuma das pessoas envolvidas nesse triste acontecimento. Não tenho simpatia ou antipatia por nenhuma delas, salvo a natural solidariedade aos familiares dos bebês mortos. Falo por razões profissionais, pois me recordo que a polícia adorava arrancar médicos de seus plantões, para conduzi-los coercitivamente às delegacias. O abuso de autoridade não era contido nem mesmo pelo fato de desguarnecer o hospital, deixando outros pacientes sem atendimento, mesmo em horários de pico. E agora nos chega a notícia de que um promotor de justiça militar deu uma ordem à corporação: deter os médicos em toda situação de aparente omissão, sob pena de responder ele mesmo.
Escreva aí: os abusos e a truculência vão se multiplicar. Muitos profissionais corretos vão acabar sofrendo as consequências das más decisões administrativas, da má aplicação dos recursos, da tendenciosa exploração midiática e da irracionalidade punitiva. Esperar antes de acusar não é apenas prudente, como também uma obrigação jurídica. Em casos assim, essa exigência salta aos olhos.

9 comentários:

Anônimo disse...

O estado tem a maior parcela de culpa pelas mortes de crianças nas portas e dentro dos hospitais públicos. Isso por falta de investimento tanto na assistência como na infra-estrutura em saúde. Tem de ser responsabilizado o governador e seus secretários, assim como a ex-governadora e seus asseclas, pois essa chaga se tornou sistemática. Agora, as famílias e profissionais de saúde têm de ser responsabilizados sim, por uma série de fatores que vão desde a falha ou falta de orientação (hoje as maternidades estão cheias de meninas que engravidam precocemente), comodismo, perda de valores como a solidariedade, apego financeiro, piora de qualidade de vida e na convivência social. E o que é mais grave nisso tudo é a exclusão social e econômica da população deste estado, já que existindo pobreza e ignorância, lamentavelmente haverá essas chagas sociais.
A mãe dessas duas crianças mortas é de Outeiro. Assim como em casos passados de mortes em massa ocorridas na Santa Casa, a maioria das vitimas eram oriundas do interior do estado ou de Icoaraci, outeiro, Pratinha, Marituba e Ananindeua. Pô! Por que esses municípios ou distritos continuam encaminhando grávidas e doentes pra Belém?! Porque não tem investimento em políticas preventivas e de orientação em saúde assim como na infra-estrutura de hospitais e maternidades nessas regiões, se há, são frágeis,agonizam ou faliram. Indo além nesse tema, o foco não é a saúde pública, muito menos a educação da juventude. Então se morrerem mais 10, 50, 100 crianças filhos de trabalhadores, pouco importa para esses governos de plantão que só pensam em suas castas. E o que é mais grave que não houve punição até agora, isso reforça e reproduz tais crimes, sejam velados ou expostos, até que se atinja o estado de naturalização dessa mazela social, tornando-nos impotentes e apáticos a tudo isso. Se esses país fosse sério, muitos políticos e figurões envolvidos nesses casos estariam presos.

Anônimo disse...

Meu caro, concordo, em parte, com vc sobre a corda arrebentar do lado fraco, pior, do mais fraco: o das crianças mortas. Não tem volta. Agora a mãe dos anjinhos tinha problemas de saúde diagnosticados no período de sua gravidez e fez o pré-naltal na aquela maternidade. Então porque ser recusada pela mesma instituição (a ambulância sequer passou do portão)?! Poderiam os profissionais atandê-la logo que chegou naquela maternidade do que terem submetido a pobre jovem a própria sorte numa via-crúcis. Isso já caracteriza omissão de socorro. Mesmo que depois tivesse de responder inquéritos administrativos e burocráticos. Enquanto esse filme de terror não acaba, figurões e madames envolvidos nessa carnificina institucionalizada continuarão impunes.

Yúdice Andrade disse...

Das 12h42, concordo com suas afirmações. Claro que o Estado é o maior responsável por esses episódios horrendos e que deve haver responsabilização severa dos culpados, inclusive dos profissionais que atuam diretamente com os pacientes. Mas isso, claro, se efetivamente praticarem algum malfeito, porque não podemos tolerar responsabilidade objetiva (senão a do Estado).
Minha postagem não passa a mão na cabeça de ninguém, sequer na da obstetra. Mas pondera que o profissional do dia paga uma fatura que pode não ser sua. E paga caro, sendo frequentemente demonizado.

Das 13h39, em sentido semelhante ao que disse acima, se é verdade que a ambulância não passou da porta, deve ter mesmo havido omissão de socorro. Observe este trecho da postagem: "Se, por hipótese, a perícia confirmar a versão já suscitada de que os bebês nasceram mortos, a omissão de socorro seria materialmente impossível (a menos que tivessem morrido in utero no período em que a família peregrinou em busca de atendimento)."
Em suma, eu não sei se houve ou não omissão de socorro. Os lados estão contando versões muito diferentes da história. Segundo o hospital, a obstetra e o Sindicato dos Médicos, a paciente não foi internada, mas foi atendida na ambulância. Isso não é o ideal, mas também não é omissão absoluta.
Pense no seguinte: quando uma grávida de melhor condição financeira se sente mal, mesmo que não pareça nada sério, o que ela faz? Telefona para o médico. Obstetras e pediatras fornecem seus números para os pacientes, inclusive celulares e residenciais. Mas essa é uma regalia (na verdade, uma necessidade) que que não chega à população pobre. E é aí que reside o problema.
A obstetra conduzida à delegacia não era a responsável pelo pré-natal daquela mãe. Se a gestante se sentia mal, deveria ter sido consultada pela própria médica, que já conhecia o seu caso. Mas o sistema não lhe deu condições de acessar a profissional. Isso é um problema a ser enfrentado com seriedade e dignidade.

Anônimo disse...

Por acaso, esse promotor da justiça militar é o professor Clementino?

Yúdice Andrade disse...

Não. Eu sempre me refiro nominalmente às pessoas do meu convívio, para evitar qualquer má interpretação. Não sendo o Clementino, não mencionei o nome do promotor por não considerar relevante, no contexto. A crítica não é de ordem pessoal. E acho que o Clementino não daria uma recomendação dessas.

Frederico Guerreiro disse...

De fato, o prof. Clementino não daria uma recomendação dessa porque tem bom senso.

Anônimo disse...

Eu também passei por algo, se não igual devido minha condição econômica, pelo menos semelhante a da pobre mãe das crianças.
Senti dor de parto 15 dias antes da data marcada, em uma madrugada de uma sexta-feira de julho, época que os médicos estão todos viajando. Liguei diversas vezes para a obstetra que acompanhou todo o meu pré-natal, mas, infelizmente, ela não atendeu nenhuma das minhas ligações. Eu e meu marido saímos de madrugada direto para uma maternidade, mas, para minha surpresa, não existia obstetra de plantão. A essa altura dos acontecimentos eu já imaginava ter meu filho dentro de um carro dos bombeiros, ou pior, em plena rua. Felizmente, fui para a emergência da Unimed e lá um obstetra de plantão nos atendeu e fez o parto. Sei que as índias têm seus filhos sozinhas no meio do mato, mas não somos preparadas para isso, nossa cultura não é assim. Além do mais, meu bebê estava sentado. Você já imaginou o que é passar por isso?
Quando vi a reportagem da senhora que perdeu seus bebês chorei muito com todo o acontecido, porque só quem passou por algo semelhante sabe todo o medo, fragilidade e desespero que nos acomete em um momento como esse.
Não me atrevo a afirmar que a culpa foi dos médicos, mas um pouquinho de solidariedade, de humanidade, ainda que não salvasse a vida dessas crianças, certamente seria uma forma de minorar a dor da mãe, e daria um pouco de conforto.
Ela foi tratada como um animal, sendo mandada de um hospital para outro. Sabiam que o parto dela era de risco, porque ela estava fazendo pré-natal na Santa Casa. Ainda que os bebês já estivessem mortos no momento do parto, o modo como a mãe foi tratada é uma afronta à dignidade da pessoa humana.

Anônimo disse...

Trago minha solidariedade para com essa familia e com muitas outras que tem que enfrentar o mesmo tipo de problema. Culpar quem em momento de desespero? Infelizmente esse Governo que nos rege gira em torno de politicagens e mesquinharia.
Yudice, talvez esteja fugindo ou generalizando demais o tema da discussão, mas como sei que esse blog é bem frequentado gostaria de deixar algumas indignações registradas.

Com todos esses casos de má qualidade na prestação de serviços na área de saúde pública, acredite que os gestores [municipais] estão se preocupados em fazer licitação (ou não) para adquirir máquinas de ponto eletrônico aos postos de saúde. Frise-se que são Unidades de Saúde que sequer tem enfermeiros ou materiais para trabalho digno. Antes da bomba estourar, alguém vai ganhar dinheiro, de novo.

Yúdice Andrade disse...

Deveras, Fred.

Das 9h05, agradeço o seu depoimento comovente e lhe dou razão. Vivi com minha esposa a experiência da gestação em 2008, de modo que ela ainda é muito viva em minha mente. Sei como a mulher fica sensível, vulnerável e cheia de necessidades. Não tivemos nenhum sobressalto, mas mesmo assim houve muitas preocupações. Um dia, vendo uma reportagem sobre um bebê que nasceu numa praça e chegou a cair no chão molhado, peguei-me com lágrimas nos olhos. É dolorido, mesmo.
Espero que seu filho esteja saudável e feliz. Está claro que amor ele tem em casa.

Vamos nos indignar sim, das 19h18. Isso faz diferença. Tanto que o governador sentiu a necessidade de mostrar a cara, ainda que para fingir sua falsa indignação e se isentar de responsabilidade, por meio de discursos vazios e nenhuma assunção de compromisso. Em outros tempos, ele não daria a mínima. Se o fez, é porque sabe que o sentimento social em torno do caso terá consequências.