quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Situando no tempo

Depois que declarei minha amizade pela novela Cordel encantado, sentimento que surpreendentemente surpreendeu umas tantas pessoas, de vez em quando alguém conversa comigo a respeito. Eis que surgiu um questionamento sobre a quantidade de automóveis e de telefones na pequena e nada pacata cidade pernambucana de Brogodó. Será que as autoras estariam exagerando na modernidade, faltando com a verdade histórica?
Sem dúvida, Cordel encantado é um amontado de licenças poéticas, por isso não devemos levar tão a sério o que nos é exibido. Mas especificamente em relação aos dois itens questionados, podemos tirar algumas conclusões.
Não se sabe ao certo em que ano se dá a estória que nos é exibida, sendo possível chegar a um resultado aproximado a partir da única informação precisa fornecida. Na cena em que Jesuíno e Açucena contemplam os proclamas de seu casamento, é possível ler no documento que Jesuíno Araújo nasceu em 1888, ano da abolição da escravidão. No primeiro capítulo, quando o casal Euzébio e Virtuosa chegam à fazenda do coronel Januário Cabral trazendo Açucena, um bebê de meses, Jesuíno é um menino de aproximadamente três anos. E como o tempo todo se repete que a rainha Cristina morreu "há mais de vinte anos", deduzimos as idades assim: Açucena tem no máximo 21 e Jesuíno, 24, talvez 25.
Por conseguinte, a trama se passa por volta de 1912 ou 1913.
Em relação ao telefone, segundo soube através de um simpático site infantil, em 1876 houve um grande evento em Filadélfia, para comemorar o centenário da independência norteamericana. Tratava-se de uma feira com vários inventores apresentando suas criações. Um deles, Alexander Graham Bell (largamente conhecido como inventor do telefone, embora o Congresso dos Estados Unidos, em 2002, tenha atribuído a invenção ao italiano Antonio Meucci, que fez uma demonstração pública em Nova Iorque, em 1860), ignorado num cantinho obscuro até receber a visita do imperador do Brasil, Dom Pedro II, que já o conhecia. A atenção que lhe foi dada pelo monarca brasileiro teria ajudado Bell a promover o seu produto, além de ter encomendado telefones, que foram aqui instalados logo no ano seguinte.
O Brasil teria sido o segundo país a ter telefones. Em 1883, o Rio de Janeiro já possuía cinco centrais telefônicas, com capacidade para mil linhas cada. Até 1885, Campinas (SP) e Pelotas (RS) já contava com o serviço. Assim, não surpreende que Brogodó tivesse telefones, até porque são poucos: apenas na prefeitura e na delegacia.
Quanto ao automóvel, o alemão Karl Benz patenteou em 1886 um veículo com autopropulsão a motor de combustão interna, a gasolina, desenvolvido um ano antes. Mas foi Henry Ford que iniciou a produção em série e foi o Ford T que popularizou a engenhoca, a partir de 1908. Mas antes mesmo de se popularizarem, já havia automóveis por estas bandas, como conta o site http://www.carroantigo.com/. Na primeira década do século XX havia uns poucos veículos importados no país, inclusive no Maranhão (1905, foto). Isso exigia, naturalmente, que o importador fosse alguém bem rico. Logo, o mais provável é que apenas o coronel Cabral pudesse dispor de um Brogodó. E quem sabe o prefeito Patácio Peixoto, que sabidamente se locupleta dos recursos públicos. Mas é pouco provável que a polícia contasse com tal regalia, assim como também é improvável que tantos jornalistas chegassem da capital pilotando máquinas particulares, muito menos uma mulher. Afora isso, não sabemos se o carro do Rei Augusto foi trazido de Seráfia ou conseguido de algum modo em terras brasileiras.
Seja como for, Brogodó é um mistério. Afinal, como explicar que uma cidadezinha que ninguém sabe onde fica (lembre a cena em que o delegado Batoré liga para a capital, pedindo reforços, a mando de Baldini e Úrsula), e perceptivelmente sem nenhuma atividade econômica expressiva, possua um palácio governamental tão grande e suntuoso? Mas, enfim, até os sertanejos moram em casas tão grandes e cheias de móveis...

Acréscimo em 16.8.2011:

LZ 127 Graf Zeppelin
 Devido ao capítulo do dia 13 de agosto, no qual a família real de Seráfia voou em um dirigível, a todo momento chamado de "Zeppelin", esclareço que o primeiro voo com um dirigível se deu em 8.11.1881, sendo comandado pelo paraense Júlio César Ribeiro de Souza, que fez exibições aqui em Belém, no dia de Natal do mesmo ano. Ou seja, já existiam dirigíveis no ano em que se passa a novela. Os grandes dirigíveis, contruídos pela fábrica do conde alemão Ferdinand von Zeppelin (de onde vem o termo que se tornou mais famoso do que "dirigível"), levantaram do chão a partir de 1900.
No entanto, o primeiro voo de longa duração (entre Frankfurt e Nova Iorque) somente ocorreu em 1928. Portanto, uma viagem entre o Brasil e Seráfia está fora da realidade. E como aquele voo inaugural durou quase cinco dias, seria improvável que a corte chegasse tão descansada como chegou. Desta vez, as autoras recorreram à licença poética.

Mais: http://pt.wikipedia.org/wiki/Telefone; http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_autom%C3%B3vel; http://pt.wikipedia.org/wiki/Ford_t; http://www.carroantigo.com/portugues/conteudo/curio_automovel_no_brasil.htm; http://pt.wikipedia.org/wiki/Dirig%C3%ADvel

2 comentários:

Cris Mattos disse...

Adoro Cordel Encantado.

É a única coisa na Globo que sinto pena ao perder. rs...
(ou, sendo muito sincera, sinto prazer quando consigo ver...)

Marcos Caruso falando do povo "brógódódêêênse" não tem preço!

É tudo louco e sem sentido. E eu adoro.

Yúdice Andrade disse...

É muito bom mesmo, Cris. Fico triste de pensar que ela acabará em 24 de setembro.