domingo, 22 de fevereiro de 2009

Prescrição — mais uma péssima ideia

Imagine a situação: um médico incorre em erro durante procedimento cirúrgico, que leva à morte um paciente idoso e com a saúde bastante debilitada. Os riscos haviam sido informados à família e se pode até dizer que o óbito era esperado. Apenas por uma dessas infelicidades, um pequeno erro do cirurgião apressou o desfecho. Poderíamos, assim, falar em homicídio culposo. A família, porém, de certa forma acreditando que o idoso "descansou", não move contra o médico nenhuma ação de cunho penal ou disciplinar. Mas negocia uma espécie de indenização. Mesmo sem um acordo quanto a valores, o médico inicia o pagamento em prestações mensais. Anos mais tarde, ele cancela os pagamentos, alegando que esgotou o valor oferecido. A família, contudo, quer mais. Não tendo seus interesses atendidos, aí sim, registra uma ocorrência policial contra o médico, que acaba denunciado por homicídio culposo. Podemos ainda acrescentar que, em toda a sua longa carreira, esse foi o único incidente no qual o profissional se envolveu. Mesmo assim, agora se tornará réu e poderá ser condenado, sofrendo graves efeitos sobre sua credibilidade.
Pergunto: é justo que esse médico seja imputado criminalmente anos após o fato, quando as circunstâncias apontam que o problema dos supostos prejudicados era mais de cunho patrimonial do que moral?
Justa ou não, a situação hipotética acima é perfeitamente possível de ocorrer. Uma das formas de evitá-la é por meio do instituto da prescrição penal, que o projeto de lei 4580/2009 (veja postagem seguinte) pretende abolir.
O projeto em questão é mais uma dessas ideias insensatas e irrefletidas que os nossos legisladores perpetram com grande frequência. Mas, como não poderia deixar de ser, já ganhou a simpatia de muitos. Afinal, é fácil tomar decisões sobre aquilo que não se entende e que, exatamente por isso, não se pode dimensionar as consequências.
Logo de saída, é estarrecedor que uma medida tão drástica seja tomada sem qualquer fundamentação. Sim, porque, ao se ler a justificativa do projeto, constata-se que ela não diz coisa alguma. Apenas lá pelo meio aparece um vocábulo muito grato aos ideólogos da lei e ordem: "impunidade". Para eles, desde que se possa dizer que a medida combate a impunidade, não se precisa dizer mais nada. Os fins justificam os meios.
Fosse sério o projeto, o proponente teria redigido uma substancial justificativa. Fosse sensato o projeto, o proponente teria seguido uma tendência mundial (da qual talvez sequer tenha ouvido falar) de tornar imprescritíveis apenas os delitos mais graves, como já fez a Constituição de 1988, acertadamente, em relação à "ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático", e desvairadamente em relação ao racismo (CF, art. 5º, XLIV e XLII, respectivamente).
Mereceria censura, mas teria lógica, o projeto se extinguisse a prescrição em relação aos delitos hediondos ou mesmo tipos penais que, assim não classificados, fossem de especial gravidade, os quais poderiam ser definidos de acordo com o meio executivo, as condições dos envolvidos, a extensão dos danos à Administração Pública ou mesmo a quantidade de pena imposta. Nunca, porém, acabar com a prescrição pura e simplesmente, como se ela não cumprisse nenhuma função no Direito Penal, sobretudo de natureza político-criminal.
Imaginem-se ações penais por essa enorme malta de crimúnculos dos quais a lei está aborratada  lesões corporais leves, ameaças, delitos contra a honra, desacatos, desobediências, delitos culposos, além das contravenções, que sequer deveriam existir, e inúmeros outros exemplos , parando de tramitar por vícios inerentes ao Poder Judiciário ou, até mesmo, pelo desinteresse da parte supostamente ofendida. Sem a prescrição, seriam processos a entulhar perpetuamente a Justiça, sem a possibilidade de cair no esquecimento que, na prática, já merecem. Imagine-se colocar tais ações novamente em andamento, anos e anos depois, quando já faltam as provas e o réu pode acabar absolvido, justamente, pela insuficiência delas, jogando no lixo tempo, esforços, recursos humanos e dinheiro público.
Pior mesmo, contudo, é pensar em condenações extremanente tardias, que se revelem mais drásticas do que o próprio crime cometido. Esta, provavelmente, a consequência mais funesta de se acabar com a prescrição.
O projeto de lei 4580 é, como toda proposta lei e ordem, uma homenagem ao condenável hábito de falar e agir sem pensar. Digo isso porque essa mentalidade age como se, no universo criminoso, só existissem homicídios, estupros, extorsões mediante sequestro, terrorismo e megaoperações de narcotráfico. Nivela-se todo delinquente por Fernandinho Beira-Mar, como se um sujeito desses não fosse exceção, e sim regra. O assecla padrão das ideias lei e ordem não gosta de pensar em diferenças e nuanças. E se não consegue enxergá-las, pode ser menos criticável, porém certamente mais ingênuo.
Vamos torcer que a divulgação do projeto desperte mentes mais prudentes e jogue um pouco de luz nessa imensa escuridão que é o sistema de justiça criminal brasileiro.

Acréscimo de última hora:
Compete ao Código Penal estabelecer normas de caráter geral, que serão aplicadas às leis especiais, quando estas não dispuserem diversamente. E algumas leis especiais fixam prazos prescricionais. Mesmo que estejamos cientes de que a intenção do legislador é abolir a prescrição penal do ordenamento jurídico de uma vez por todas, note-se que o texto do PL 4580 muda a redação apenas do Código Penal, preservando as leis esparsas. Sabendo-se que estas podem dispor diversamente do assunto e que as cláusulas legislativas de revogação devem ser expressas, na prática isso significa que acaba a prescrição continuará a existir, formalmente, em algumas leis. Trata-se do típico conflito de interpretação que talvez não seja difícil de resolver, mas que enseja uma avalanche de processos até que a solução chegue.
Um bom projeto de lei não causa dificuldades como essa.

4 comentários:

Anônimo disse...

Caro Yúdice,

antes de tudo, uma pergunta: a extinção da prescrição penal não seria inconstitucional? Afinal, o instituto diz respeito não apenas à segurança jurídica, mas também se refere a um direito fundamental do indivíduo.

Realmente, não seria possível uma interpretação a contrário senso do texto constitucional (art. 5º, XLIV e XLII), ou seja, na medida em que o constituinte estabeleceu de forma taxativa que os crimes imprescritíveis seriam somente aqueles ali insertos, todos os demais seriam prescritíveis?

E, sendo, uma cláusula pétrea, torna-se insuscetível de alteração até mesmo por emenda constitucional, que dirá por lei?

Por fim, se for realmente este o caso, não cabe, desde logo, mandado de segurança ao STF para exercer controle preventivo de constitucionalidade, haja vista a clara violação ao art. 60, §4º, CF, que veda até mesmo a deliberação que pretende abolir direitos fundamentais?

Marcelo Dantas

Yúdice Andrade disse...

Realmente, Marcelo, um certo esforço interpretativo pode nos levar à conclusão de que abolir a prescrição é inconstitucional. Não existe nada expresso a esse respeito, mas se justamente o art. 5º da Constituição de 1988 indica dois, e apenas dois, casos de imprescritibilidade, pode-se deduzir que os demais casos não deveriam seguir o mesmo destino.
Contudo, é o caso de perguntar: o constituinte não mencionou outras hipóteses de imprescritibilidade porque não as desejava ou apenas porque não pensou nelas? Essa construção formal permite mesmo que se deduza uma inconstitucionalidade?
Apesar de simpatizar com a tese, hesito em admitir que seja correta, neste momento. Que tal nos aprofundarmos mais na questão e voltarmos a ela?

Napoleão disse...

Foi criticado pelo Arbítrio do Yudice o projeto que tem por objeto a extinção - generalizada - da prescrição. Nessa crítica, ele observa "Mereceria censura, mas teria lógica, o projeto se extinguisse a prescrição em relação aos delitos hediondos..."
Em comentário, Anônimo adverte que é inconstitucional tal proposição.
Bem, existe um projeto em tramitação na Câmara dos Deputados - PL 3.622, de 2008 - que tem por objeto justamente tornar imprescritível a pretensão punitiva relativa a crimes hediondos.
Poderiam comentar a possível inconstitucionalidade desse projeto 3.622?
Se forem pela inconstitucionalidade, poderiam confrontar esse resultado com o Item 3 da Ementa (II) do RE 460.971/RS (Fl 916) que pode ser acessado no endereço http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=460971&classe=RE
Com agradecimentos,

Yúdice Andrade disse...

Caro Napoleão
1. Antes de mais nada, a suscitada inconstitucionalidade não foi da minha manifestação, cujo trecho você transcreveu, e sim do projeto de lei sob comento. Quem suscitou a questão não foi um anônimo, pois assinou embaixo: Marcelo Dantas.
2. De minha parte, sempre considerei inconstitucional a Lei de Crimes Hediondos como um todo. Ela chegou a ser objeto de julgamento pelo STF e a sua manutenção no ordenamento jurídico se deu por maioria.
3. Note-se, inclusive, que a polêmica vedação à progressão de regime levou 16 anos para ser derrubada e isso somente foi possível devido à mudança de composição da Suprema Corte.
4. Quanto ao seu questionamento, logo de saída podemos pensar em inconstitucionalidade do PL 3622 pelo mesmo argumento que mencionei para o Marcelo: a Constituição de 1988 menciona expressamente duas - e apenas duas - hipóteses de crimes imprescritíveis. Se entendermos essa norma como taxativa, qualquer proposição visando à abolição da prescrição, para todos ou alguns crimes, será inconstitucional. Contudo, não é uma questão pacífica. Há bons argumentos para ambos os lados.
5. Como gosto de aprofundar melhor os assuntos, vou consultar o PL e o recurso mencionados em seu comentário e, quando tiver uma folguinha na correção das provas de meus alunos, faço uma postagem específica sobre isso. Pode ser?
Um abraço.