quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Doença ou crime

Nosso amigo Edyr Augusto Proença, em seu blog Opinião Não Se Discute, formulou-me um questionamento. Não sei exatamente por que para mim, já que o ponto é saber se pedofilia é doença ou crime. Mas aqui vai o que respondi a ele. Agradeço aos que puderem contribuir, corrigindo meus erros ou ampliando as ideias.

1. Nas últimas décadas, os avanços da Psicologia e da Psiquiatria passaram a descrever tecnicamente comportamentos que, antes, eram tidos apenas como extravagantes ou condenáveis. Supunha-se que as pessoas os praticavam por depravação de caráter, perversidade ou fraqueza. Hoje, sabe-se que existem componentes neurológicos, hormonais e de outras ordens que afetam concretamente o modo de agir das pessoas, em alguns casos até reduzindo ou suprimindo a sua capacidade de autodeterminação.


2. Hoje, sabemos que a pedofilia, assim como muitos outros comportamentos aberrantes, pode não ser  frise-se que eu disse "pode não ser"  exatamente uma questão de escolha. Contudo, há que se distinguir: uma coisa é a doença mental (o teu texto fala em doença), outra é o transtorno de comportamento que não se caracterize como doença mental.


3. Quando consultamos manuais de Medicina Legal, ou mais especificamente obras sobre Psiquiatria/Psicologia Forense (eles é que devem ser consultados e não obras jurídicas, já que juristas não são capacitados a fazer essas avaliações), observamos que os transtornos sexuais (chamados de "parafilias") são apresentados como desvios de conduta ou de personalidade, mas não como doenças mentais. Logo, a pessoa age consciente do que faz  o ato em si, sua significação e danosidade. O problema não está na capacidade de entendimento, mas na de autodeterminação. Há pessoas que compreendem fazer algo nocivo, mas não se contêm. Algumas até sofrem remorso. E há, naturalmente, aqueles que agem por pura maldade, podendo evitar suas condutas.


4. Frequentemente, esses transtornos não têm cura, mas podem ser controlados através de terapias (acompanhamento psiquiátrico + tratamento medicamentoso). Em qualquer caso, exige uma enorme disciplina do paciente, que sempre pode reincidir. Por oportuno, sugiro o filme "O lenhador", com Kevin Bacon, que traça um interessante retrato de um pedófilo condenado, em liberdade condicional, que luta contra suas inclinações, plenamente consciente de que essa luta será para a vida toda.


5. Por fim, uma conduta ser crime ou não depende das escolhas político-criminais que um Estado faz. Essa, por sinal, é a parte mais fácil de resolver. Sim, o assunto tratado aqui é crime. Não existe um crime de "pedofilia", como muitos pensam. Existem diversos crimes sexuais, que consistem em pedofilia quando perpetrados contra crianças e adolescentes.


6. Este é um assunto que gosto de debater, apesar de ser repugnante. Estas são apenas linhas para um começo de bate papo (advogados são prolixos!!!). Espero ter ajudado.
Abraços.

7 comentários:

Anônimo disse...

Esse é um daqueles assuntos em que "ser" e "dever-ser" são difíceis de distinguir: no caso, a resposta sobre uma conduta de pedofilia ser crime depende bastante da resposta sobre ela dever ser crime. Afinal, mesmo que o Estado fizesse "escolhas político-criminais" no sentido de tratá-la como crime, ou seja, mesmo que ela estivesse prevista legalmente como crime, se a caracterizássemos como uma conduta em que o indivíduo não tem consciência e/ou autodeterminação enquanto age, poderíamos, servindo-nos de noções de intervenção mínima, última ratio, necessidade de dolo e exigibilidade de conduta diversa, descaracterizá-la como tal na hora da aplicação da legislação penal. Então, parece-me que a questão se torna saber: Pedofilia deveria ser considerada crime? E, se a resposta for, como parece ser razoável que seja, que depende das circuntâncias do caso, do tipo de conduta e do grau de autodeterminação que o indivíduo apresente, então a pergunta se tornaria: Em que circunstâncias a pedofilia deveria ser considerada crime? Feitas essas considerações, devolvo a pergunta ao Yúdice, esperando pelas sua nova resposta.

Yúdice Andrade disse...

Acredito, André, que o Direito Penal já oferece uma resposta para a questão sugerida, que é a imputabilidade penal. Por meio do conceito de imputabilidade, podemos distinguir:
a) a eleição de condutas que devem ser definidas como crime, que exprime as escolhas político-criminais do Estado;
b) de outro lado, a possibilidade de impedir que certa e determinada pessoa não responda pela conduta tipificada, devido a certos atributos pessoais.
Parece-me simples, portanto, que as condutas características do fenômeno da pedofilia sejam criminalizadas, com o anseio de generalidade a que aspiram as normas jurídicas - respondendo-se positivamente ao primeiro questionamento -, ficando a materialização da punibilidade condicionada, como já se faz há muito tempo, à comprovação de que o agente tinha capacidade de cognição e de autodeterminação.
Sobre as circunstâncias para sua criminalização, lembro que devemos aplicar um Direito Penal de ato. Portanto, compete ao legislador apenas fixar os aspectos objetivos que mereçam resposta penal.
A meu ver, o ponto mais sensível nesta questão não é criminalizar (considero isto um ponto já resolvido). O mérito é: criminalizada a conduta, qual deve ser a resposta do Estado? Pena ou tratamento? Qual pena e qual tratamento?
Sem dúvida, são aspectos bem mais difíceis de resolver.

Anônimo disse...

Amigos,
esse é o ponto: pena ou tratamento?
Edyr

Antonio Graim Neto disse...

Caríssimos Professores,
vejo esta discussão como algo que vai além de um questionamento singelo. Não discordo quando aduzem que o ponto a ser tratado, neste momento, seja a definição da pena adequada a ser aplicada as práticas de pedofilia. Porém, refuto necessário que se retome a discução da criminalização da conduta, posto que é a partir dela que se pode definir pena e de acordo com o princípio da proporcionalidade, penso ser mais prudente uma visão mais atenta da criminalização referida. Partindo de uma visão sistêmica (teoria Luhmanniana, voto por observar o sistêma de crimes, na verdade, um sistema dentro de um ambiente formado pelo sistema social e psíquico, sendo o de crimes uma diferenciação destes. Isso significa dizer que o crime é oriundo do própio corpo social. Não sendo possível tecer grandes considerações acerca da teoria, paro por aqui para tentar explicitar meu posicionamento. O homem, ao se comunicar com o sistema, o qual está inserido, cria uma expectativa sobre o mesmo, dependendo do sucesso ou não de suas expectativas, este passa a se moldar perante o ambiente, isso quer dizer que este homem depende de uma harmonia entre o sistema social e psíquico para se autodeterminar perante o ambiente. Isto demonstra a complexidade das relações sociais, que acabam aceitando condutas e rejeitando outras, sendo uma das maneiras de se fazer isso através do sistema de crimes, ou melhor, criminalizando condutas, posto que onde há harmonia na comunicação, passa-se a criar um padrão. Porém, quando se tipifica condutas, na maioria das vezes não se leva em consideração a origem das condutas repudiadas. Os indivíduos se esquecem ou parecem querer esquecer que também fazem parte do sistema e que se houve a contingência (falha na comunicação) é porque ele também é responsável pelos seus efeitos. De maneira alguma venho justificar a atitude do pedófilo, mas ressalto a importância de se analisar a origem de seu comportamento, posto que sendo doença ou não, foge aos padrões ditos normais de conduta, ou melhor, as comunicações "perfeitas". O ambiente em que o agente está inserido é fator determiante para qualquer conduta, seja ela criminosa ou não, mas no caso em tela, ninguém vira do dia pra noite um pedófilo e seja transtorno ou patologia, tal comportamento é resultado de um passado no mínimo incomum, o que não pode fazer com que o Estado, acolhendo a aclamação passional da população que não pode sustentar seus argumentos com propriedade, já que não esta diretamente envolvida com o caso concreto, querer estrapolar seus limites punitivos, com o intuito de fazer do direito penal um "analgésico" social. Penso ser o tratamento a medida mais adequada a se impor ao agente, posto que crimes de natureza sexual estão íntimamente ligados ao o "homem instinto", a características biopsicosociológicas e não a vontade e consciência pura e simples. Penso ser prudente nos questionarmos se queremos um Estato que puna a qualquer preço para trazer a sensação,reafirmos SENSAÇÃO e não efetiva segurança, ou um poder punitivo do fato, considerando todas as suas características?

Anônimo disse...

Bons argumentos, não são?
Abs
Edyr

Anônimo disse...

Caro Antônio. Embora não compartilhe da sua simpatia pela teoria sistêmica, entendo sua importância para a discussão contemporânea do direito, numa interface com a sociologia, e respeito a posição dos que a adotam como modelo explicativo em relação aos comportamentos e às instituições sociais. Contudo, não vejo como ela poderia ser de alguma ajuda nesse assunto. Primeiro, porque considero que a teoria sistêmica não fornece nenhum parâmetro de previsão (que frustraria a idéia básica de contingência), motivo por que, embora, se acreditarmos nela, saibamos de antemão que a melhor solução seria aquela que melhor conseguisse estabilizar expectativas normativas de conduta, não podemos saber, previamente, se seria a adoção da punição ou a adoção do tratamento a alternativa que levaria àquele resultado. Isso porque as expectativas que precisam ser estabilizadas são, devido à dupla contingência, essencialmente tão contingentes, e portanto tão imprevisíveis, quanto as próprias condutas, sendo toda tentativa de antecipar os efeitos de uma norma um mero exercício de especulação sem base teórica suficiente. Além disso, as expectativas que precisariam ser estabilizadas seriam não apenas aquelas quanto à conduta do indivíduo, mas também as expectativas da sociedade com relação ao indíviduo, do indivíduo com relação à sociedade, da sociedade com relação ao Estado, do Estado com relação à sociedade, do Estado com relação ao indivíduo, do indivíduo com relação ao Estado etc; isso sem contar que tais expectativas não se dariam apenas no âmbito do sistema jurídico, mas também no sistema social, assim como no econômico, no cultural etc., com tantas e tão imprevisíveis repercussões que seria simplesmente fantasioso supor que teríamos chance de prevê-las com algum grau de exatidão. Por isso mesmo, considero que a decisão sobre punir ou tratar tem que ser tomada de acordo com diretrizes e critérios normativos (sobre a forma mais correta de lidar com casos desse tipo) e não conseqüenciais (sobre as possíveis repercussões dessa ou daquela alternativa sobre as expectativas normativas do ambiente).

Yúdice Andrade disse...

Antônio e André, agradeço por darem ao tema uma discussão tão embasada. Precisei voltar a ler os textos para tentar assimilá-los melhor, porque o meu pragmatismo dos últimos tempos têm comprometido a capacidade teórica. Discussões assim, por sinal, apontam a direção para que eu supra essas lacunas.
E vamos em frente.