Ao julgar um habeas corpus individual na sessão de ontem, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão que está ganhando enorme repercussão na mídia e, com certeza, vai acabar na boca do povo, inclusive nos salões de beleza e botequins pelo país afora. A decisão foi no sentido de que uma pessoa só pode ser recolhida à prisão após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
O tema é por demais controverso e, por isso, deixarei para tecer maiores considerações oportunamente, após maior reflexão. Contudo, umas linhas iniciais já podem ser expostas.
Qualquer iniciado em processo penal sabe que, a princípio, uma pessoa só deveria ser presa após ter a sua culpa provada por um tribunal legítimo, ao final de um processo regular e quando não coubesse mais nenhum recurso. Essa é uma regra elementar. Contudo, ela se choca gravemente com a realidade social, na medida em que certas situações admitem — e até exigem — que o criminoso seja preso desde logo, dado o grau de certeza que se tem de sua culpa (como na hipótese de flagrante delito) ou, inclusive, como forma de pacificação social (particularmente em relação a crimes muito graves). Daí surgem as chamadas prisões cautelares, que se destinam a assegurar o processo até que uma sentença definitiva possa ser obtida.
A celeuma se estabelece justamente aí: no embate entre (perdoem-me os termos maniqueístas: é apenas um recurso para simplificar a explicação) o certo (prender apenas quando se tenha a certeza da culpa) e o eventualmente necessário (prender imediatamente). Num país cheio de mazelas sociais, a situação desce a níveis mesquinhos e injustos. Por outras palavras: prende-se demais. Prende-se sem motivo, por crimes menores e por tempo prolongado.
A par disso, os processos demoram absurdamente, o que prolonga o tempo das prisões cautelares de forma ilegal. Surgem, assim, os problemas dentro do problema. Para o cidadão comum, que defende inclusive a pena de morte, o que interessa é que os criminosos estejam presos e pronto, sem que se meçam as consequências. Mas para quem administra esse caldeirão de misérias — Judiciário, Ministério Público, polícias e sistema penal —, o buraco é muito, muito mais embaixo.
Na superpopulação carcerária e no sentimento de abandono inevitavelmente experimentado pelo preso estão dois fatores da violência que campeia nas carceragens, que não pode ser ignorada nem resolvida a forceps, a despeito das opiniões popularescas e de certos segmentos da mídia mundo-cão.
O STF proferiu uma decisão correta sob uma perspectiva estritamente jurídica. Contudo, ela não responde os muitos questionamentos decorrentes. Por exemplo: como implementar essa regra antes de reformarmos a processualística recursal brasileira? Como fazê-lo antes de abolir um monte de tipos penais arcaicos e inconvenientes, ainda existentes? Antes de investir na infraestrutura necessária para implementar, com eficácia, as penas restritivas de direitos? Antes de mudar a cultura judiciária de prender por qualquer bobagem? Antes de enfrentar sem rodeios a corrupção entranhada nas polícias? Antes de resolver, no plano legislativo, a adoção de outras penas que não as atualmente empregadas e aprimorar o sistema das multas?
Uma decisão judicial precisa ter os pés fincados na realidade. Por melhor que seja a interpretação constitucional, se dela resultar descalabro social, de nada terá adiantado. Essa questão o STF não parece ter enfrentado.
5 comentários:
Olá Primo,
Muito bom estas postagens suas, ainda mais quando se trata de Direito hehe
Fui atrá do teor completo do ministro Eros Grau e confesso que gostei de ter lido. Afinal ele conseguiu ficar a par do clamor social que, suprimindo qualquer garantia constitucional, "aclama" por Justiça vingativa.
Foi também uma verdadeira aula de Processo Penal e Execução Penal à luz do texto constitucional.
Obrigado mais uma vez.
Abraços!!!
Ainda não pude ler a decisão na íntegra, mas o farei para escrever uma outra postagem a respeito.
Não duvido do que dizes acerca do aspecto constitucional, mas continuo insistindo quanto aos impactos de uma decisão dessa monta.
Pois é Primo!!!
Acontecerá que irão substituir as execuções antecipadas por prisões preventivas, quase sempre sob o argumento de "garantia da ordem pública" ou "indício suficiente de autoria".
Abraços!!!
PROCESSO Nº 2009.2.007967-8
AUTOS DE HABEAS CORPUS. IMPETRANTE/PACIENTE: LUIZ AFONSO DE PROENÇA SEFER.
AUTORIDADE IMPETRADA: DELEGADA DE POLÍCIA CIVIL CHRISTIANE LOBATO.
Vistos etc. Tratam os autos de habeas corpus impetrado por LUIZ AFONSO DE PROENÇA SEFER, através de seus advogados devidamente identificados nos autos, em seu favor contra ato da Delegada de Polícia Civil Bel. CHRISTIANE FERREIRA SILVA LOBATO, objetivando a decretação de nulidade de todos os atos da investigação até então praticados pela autoridade impetrada, desconstituindo-se a constrição do indiciamento e identificação criminal do paciente, consoante fundamentos esposados às fls. 02/05. Pleiteou ainda a concessão de liminar, determinado o sobrestamento do inquérito policial instaurado em seu desfavor até o julgamento do writ. A seguir vieram os autos conclusos. Passo a decidir. Discorrendo acerca da admissibilidade de medida liminar em habeas corpus, Guilherme de Souza Nucci, assim se posiciona: Liminar em Habeas Corpus: é admissível que o juiz ou tribunal no caso deste incumbe a analise à autoridade indicada no regimento interno, que no Tribunal de Justiça de São Paulo seria o presidente da Seção Criminal - , conceda se entender necessário, liminar para fazer cessar de imediato a coação. Não é hipótese expressamente prevista em lei, mas admitida com tranqüilidade na jurisprudência(IN Código de Processo Penal Comentado, Estudo integrado com Direito Penal e Execução Penal. Apresentação Esquemáticas da matéria. 8ª edição ver. Atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 1053) Cabe destacar que para concessão da medida liminar em habeas corpus devem concorrer 2 (dois) requisitos, quais sejam: a) que haja relevância dos motivos ou fundamentos em que se assenta o pedido inicial; e b) que haja possibilidade da ocorrência de lesão de difícil reparação ao direito do paciente, se for mantido o ato coator até sentença final ou se o provimento jurisdicional instado só lhe for reconhecido na decisão final de mérito do writ No caso vertente, pelos argumentos e documentos que instruem a petição inicial, não se vislumbra a possibilidade de lesão de difícil reparação se não for sobrestado o andamento do inquérito policial , ou seja, o periculum in mora. Com efeito, não há nos autos data designada para a identificação criminal impugnada, pois apenas consta do presente feito, o ofício nº 075/2009 GPE em que a autoridade tida como coatora solicita ao Delegado Geral de Policia Civil que oficie à Assembléia Legislativa do Estado do Pará, a fim de ser agendado com o paciente sua identificação criminal prevista no artigo 3º inciso I da Lei nº 10.054/2000, conforme se observa às fls. 16. Dessa forma, não há que se falar em urgência para o deferimento liminar tendo em vista que tal identificação ainda depende de requerimento do Delegado Geral de Policial Civil junto à Chefia do Parlamento estadual e de agendamento junto ao paciente, não se tratando de medida na iminência de ser efetivada antes do julgamento do presente habeas. Acrescente-se que o pedido de liminar se restringe ao incontinenti sobrestamento do inquérito policial instaurado em seu desfavor até o julgamento do presente writ. (grifo nosso)(fls. 05). Quanto à alegação de plausibilidade do direito invocado pelo impetrante, há de se observar que aparentemente, através de uma visão inicial, os atos impugnados demonstram estar revestidos de legalidade, já que o inquérito policial ora guerreado foi instaurado por requisição do Procurador Geral de Justiça (fls. 08), mormente considerando que o Ministério Público Estadual de 2º Grau possui atribuição para o ajuizamento de ação penal contra Parlamentar Estadual. Ante o exposto, em face da ausência dos requisitos para concessão de medida cautelar de sobrestamento do inquérito policial, indefiro a liminar pleiteada pelo impetrante. Requisite-se da autoridade tida como coatora as informações escritas no prazo de 48(quarenta e oito) horas. Em seguida, conclusos. Intimem-se. Cumpra-se Belém, 12 de fevereiro de 2009. ERIC AGUIAR PEIXOTO Juiz de Direito respondendo pela 1ª Vara Penal de Inquéritos Policiais da Capital.
Prezado Yudice,
permita-me discordar de seu posicionamento. A meu ver, não cabe ao STF analisar com profundidade os impactos sociais, econômicos e até mesmo políticos de suas decisões (embora se saiba que, por vezes, inegavelmente suas decisões assumem fortes cores políticas). Sua preocupação mor é, e deve ser, o resguardo da constituição.
Todos os problemas estruturais e conjunturais citados por vc dizem respeito, essencialmente, a políticas públicas e, como tal, são questões a serem tratadas pelo executivo e pelo legislativo. O que não pode é o STF esperar que a inércia e inoperância desses poderes impeçam sua boa atuação, obstando a efetivação de direitos constitucionalmente consagrados, entre eles o de maior relevância - a liberdade - , que, na prática, se consubstancia no direito de não ser preso enquanto não houver sentença condenatória passada em julgado.
Muitas vezes o STF precisa sopesar elementos fortíssimos em suas decisões, estando de um lado direitos meramente pessoais e, de outro, interesses públicos. A título de exemplo, veja-se as decisões que mandam o Estado custear remédios e tratamentos caríssimos, em detrimento, muitas vezes, de toda uma política de saúde que beneficiaria centenas ou milhares de pessoas em doenças endêmicas.
A questão principal, a meu ver, não é o impacto amplo da decisão (social, econômico, político), mas a observãncia a direitos elevados a fundamentais pelo constituinte originário. Afinal, já caiu em desuso a idéia de que os direitos e garantias fundamentais são promessas constitucionais, apenas eventualmente efetivadas quando der. Se não der, paciência.
São mais. Representam nortes de cumprimento obrigatório, compulsório, impossível de serem esquecidos. Como diria Luz Fux "A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana. AgRg no REsp 1002335/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/08/2008, DJe 22/09/2008". Não há reserva do possível que justifique. Caso contrário, conforme sábia e diretamente aduz Paulo Rangel, vamos simplesmente rasgar a constituição e jogar a sorte em uma arena, e salve-se quem puder.
Marcelo Dantas.
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