domingo, 22 de julho de 2007

Uma visão sobre a mesquinharia humana


Ler Saramago não é fácil. Não porque suas ideias excedam às nossas capacidades de compreensão ou porque, motivo fútil, seja difícil enfrentar um português de Portugal tão tradicional. Um dos maiores charmes de suas obras é, justamente, aquele idioma castiço, permeado de ironias, chistes, aforismos antigos e imagens as mais malucas, tais como "em um instante se tornaria o paraíso inferno, segundo lugar este, consoante afirmam autoridades, em que o cheiro pútrido, fétido, nauseabundo, pestilento, é o que mais custa a suportar às almas condenadas, não as tenazes ardentes, os caldeirões de pez a ferver e outros artefactos de forja e cozinha". Ou "só houve que ter cuidado em não deixar escapar das mãos o corpo da pobre criatura, o trambolhão deixá-la-ia sem conserto, sem falar das dores, que depois da morte são piores" (Ensaio sobre a cegueira, Companhia das Letras, pp. 257/258 e 286, destaquei).
Há algum tempo, li As intermitências da morte, deliciosa obra que aborda o absurdo e o fantástico, eis que a morte (escrita com letra minúscula, pois existe uma Morte maior, que essa não havemos de querer saber do que se trata), ofendida por tanto que dela se fala mal, simplesmente decide que ninguém mais morrerá. E manda uma carta avisando. Todos ficam jubilosos, mas rapidamente as consequências de ninguém morrer começam a aparecer. E são terríveis, a começar porque os velhos continuam velhos, os doentes continuam doentes e os moribundos continuam moribundos. Vislumbra-se o colapso do sistema previdenciário, dos bancos e, especialmente, das seguradoras.
Eis que, em meio a esse cenário, Saramago cria a máfia, uma organização criminosa em que gente da pior espécie decide tirar proveito da desgraça alheia para enriquecer, à custa de coações e violências. Lembro-me do desconforto que senti quando ele introduz esse tema no livro. Com o tempo, não apenas os cidadãos, mas o próprio governo começa a ceder às pressões dos criminosos — perspectiva que me enlouquece de raiva. Assim, um romance de pura ficção, baseado em realismo fantástico, revela-se como um romance sobre a alma humana. Há uma guinada final, quando a morte se torna o personagem mais importante, mas isso é a parte final do livro e quem quiser que o leia.
Esta madrugada acabei de ler Ensaio sobre a cegueira, que também parte de uma premissa aberrante: um dia, sem mais nem menos, os habitantes de um país, apesar de até aí terem gozado de perfeita saúde visual, começam a ficar cegos. E é uma cegueira diferente: branca, em vez de preta, como se estivessem mergulhados num mar de leite. Acredita-se que o mal é contagioso, por isso os primeiros doentes são recolhidos a um antigo manicômio e, ali, Saramago constroi um ambiente de desespero e podridão que, honestamente, há de machucar leitores mais sensíveis. E nesse cenário surge o quê? Um grupo de pessoas que, por possuírem uma arma e balas, decidem que venderão a comida que o governo dá aos internados e, mais tarde, decidem que não querem apenas dinheiro: as mulheres também deverão servi-los sexualmente. Repugnante.
Se em As intermitências da morte a máfia já revoltava, em Ensaio sobre a cegueira a presença desses malvados, como são chamados, doi ainda mais. Porque o caráter fantasioso do primeiro não permite que nos esqueçamos de se tratar de mera ficção. A premissa do livro torna aquela situação manifestamente impossível, diluindo nosso sofrimento. No segundo, porém, a doença proposta também é improvável, até impossível, mas é inevitável pensar em hipóteses mais plausíveis. Num mundo de ebola, gripe aviária e pneumonia asiática, para citar epidemias recentes que ameaçaram o planeta como um todo, não surpreenderia se, em algum país, uma grande quantidade de pessoas fossem acometidas de algum mal e segregadas, piores do que prisioneiros criminosos, no interesse da coletividade. E aí sofressem todo o horror que o livro descreve — em síntese, passar a viver como bichos, ou pior do que estes, perder a dignidade e, por fim, a própria humanidade.
Se a intenção do artista é provocar emoções, Saramago é um vencedor. Isso não é novidade, claro. Por meio desse Ensaio, ele consegue traçar um panorama desgraçadamente verdadeiro de como a humanidade consegue ser corrupta, cruel e egoísta. Por isso fui tão atingido. Mas não pensem que o livro trata disso, senão haverá quem desista de lê-lo por conta da já mencionada sensibilidade excessiva. O que mencionei acima é o pano de fundo. A narrativa em si acompanha um grupo de sete pessoas que se mantém unido, amigo e fiel. O bem que fazem um ao outro torna a obra mais leve e fornece aquela esperança que, para muitos leitores, torna-se uma necessidade. Acima de tudo, a obra fala em vencer adversidades e em lutar por não se esquecer de que, sim, somos seres humanos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Yúdice, já li as duas obras que citaste no post. Das duas, "Ensaio sobre a Cegueira" foi a que mais me marcou. Acho que por força da degradação a que as pessoas se vêem reduzidas, em determinado ponto do livro, por força das circunstâncias tão bem engendradas pelo autor.
Mas faço uma recomendação, também do Saramago, para futura leitura - se é que ainda não a leste. Trata-se de "A Caverna". Até a metade do livro, a leitura não é tão palpitante quanto a das duas obras que mencionas, mas a solução final do livro é muito boa. Vale a pena.

Yúdice Andrade disse...

Caríssimo Francisco, ainda não li esse, mas a anotação está feita. Aliás, apenas para fins de preferência, pois em se tratando de Saramago já existe um interesse prévio de minha parte. Abraços.