Democracia e o vírus do brasilianismo
Dói na alma, mas nem sempre a educação é um bem sem contra-indicação. As pesquisas reiteram a cada rodada que as classes subalternas têm respondido com apoio e votos às políticas sociais do governo.
Onde o governo está mais presente é ali onde, proporcionalmente, tem crescido seu eleitorado. Desmentindo o argumento de que o governo falha em suas promessas de campanha. As oposições e os descontentes da esquerda também o acusam de trair sua base popular de origem.
Alternativamente, conservadores e progressistas descobrem motivo de congraçamento entre si na crítica ao suposto paternalismo governamental, que seria a razão da aquiescência das massas antes que da promoção de sua consciência cívica e autonomia política. Como é natural, não se há de responder com imperfeições terrenas às exigências do mundo platônico das idéias.
Equivalente ideal de pureza orienta os murmúrios de insatisfação quanto ao funcionamento das instituições legislativas, maculadas que estariam por operadores corruptos, por vícios simultâneos de origem e decrepitude, além de repetidas manifestações do insultuoso hábito de legislar em causa própria.
Do Executivo, o defeito mínimo que se lhe atribui é o da incompetência gerencial. Mencionam-se ademais, aqui e ali, alheamento, preguiça e incapacidade de decisão. Pela esquerda histórica, do mesmo modo insatisfeita, se assegura que o Executivo se encontra manietado por escandalosos acordos com o conservadorismo. Ou seja, o Executivo, a bem dizer, nada faz e, quando faz, faz mal ou em má companhia, descaracterizando o bem-feito.
E assim marcharia o país entre corrupção e inércia, de cambulhada com alguns outros países, poucos, igualmente cretinos, à margem do benéfico período de progresso material aproveitado pelo resto do mundo. Nem as migalhas, nós estaríamos saboreando desta vez.
Trata-se, é claro, de um diagnóstico brasilianista. Tão grave quanto o bócio e a elefantíase, o brasilianismo é a enfermidade típica do atraso, mas com patológica distribuição sociologicamente distinta.
Ela contamina preferencialmente pessoas de elevada classe de renda, habitantes de áreas urbanas, sobretudo no Sudeste do país, com diplomas universitários concentrados nas áreas de ciências sociais, economia e comunicação.
Em geral, o brasilianismo não provoca estados febris nem suores inoportunos, apresentando como principais sintomas uma enorme confusão de raciocínio, miopia conceitual e daltonismo partidário, estimulando surtos de verborragia, descontrole de adjetivos e relaxamento das vias gramaticais. Eventualmente, uma diarréia substantiva.
Dotados de imbatível lógica esquizofrênica, os contaminados costumam passar por professores, cheios de comendas, donos de escritórios de consultoria, fartos de encomendas, colunistas bem remunerados, intrigantes de notinhas jornalísticas e assessores de grupos de interesse.
Honestíssimos, em sua maioria, acreditam no que dizem, com grande pompa e muita circunstância. Causa dissabor vê-los. Ao contrário dos portadores de bócio e de elefantíase, cônscios estes da enfermidade que os atormenta, os brasilianistas desfilam orgulhosamente a própria miséria como portariam um estandarte de cruzados. Em certo sentido, são mesmo monocromáticos. Felizmente, o brasilianismo não é sexualmente transmissível. Segundo alguns clínicos, porque não é sexualmente ativo. Polêmicas médicas.
Embora bem-educados, os brasilianistas têm horror à leitura, particularmente de matérias sobre o Brasil, à exceção, obviamente, dos artigos que escrevem uns para os outros. Ignoram as estatísticas, têm vaga noção do que significa o coeficiente de Gini e não fazem a menor idéia do que foi a história da América do Sul nem do percurso secular do grande mito que são os Estados Unidos. Da Europa, conhecem os vinhos, os queijos e o carnaval de Veneza, em pacote turístico de sete dias. Constituem a mais acachapante evidência do fracasso da universidade brasileira.
Jamais um brasilianista aceitará a tese de que os pobres votam por uma razão idêntica à sua, isto é, por interesse. E, conseqüentemente, também rejeitarão a hipótese de que os carentes sejam tão racionais quanto eles, os poucos abundantes. Negarão que pertençam ao mesmo gênero de distribuição de privilégios os subsídios à exportação, a remuneração dos títulos da dívida pública e os empréstimos pré-consignados. São favoráveis ao controle da natalidade da população de salário mínimo e à pena de morte, em certos casos, que é uma forma substitutiva, ou complementar, de controle da mortalidade. Consideram-se liberais de boa cepa, pois têm entre seus melhores amigos, segundo testemunho voluntário, um negro, um judeu e um gay. A discriminação dos melhores amigos é a confissão inconsciente da lista de preconceitos que cultuam.
Não obstante os brasilianistas, ou melhor, inclusive com parcela do trabalho deles, vai se livrando das algemas do arcaísmo um país em que os conservadores parecem ter, finalmente, abandonado a estratégia de rondar os quartéis sempre que contrariados pela política. A integração material da sociedade avança pela via do mercado, a despeito dos revolucionários e dos adoradores dos monopólios, e no qual a Constituição de 1988 conseguiu evitar a institucionalização de práticas discriminatórias.
O custo de combater preconceitos e discriminações é baixo, no Brasil, porque não são protegidos por lei. Aspecto crucial, cuja relevância é perfeitamente reconhecida pelos negros da África do Sul e dos Estados Unidos e pelos antigos judeus imigrantes argentinos, por exemplo.
A sociedade precisa dos brasilianistas na exata medida em que as deficiências materiais são ainda tamanhas e a tentação para a autocomplacência é enorme. Mas estão sobre-representados na produção e controle da informação pública, comprometendo com sua vesguice melhor avaliação do que vai pelo mundo e pelo Brasil.
O formigamento social é extenso, a vida comunitária se enriquece municípios afora, mas de nada disso a maioria da população toma conhecimento, monopolizado que está o mecanismo de produzir idéias e imagens. Há evidente descompasso entre o processo de democratização em curso na vida política e social e o processo de concentração oligopolista no sistema de captação e difusão das novidades.
A unanimidade brasilianista que absorveu as fontes de informação prejudica a democracia, constitui ameaça aos direitos do cidadão de estar servido de fontes alternativas de opinião, nega, na prática, o pluralismo ideológico, enquanto busca a massificação bovina de leitores e telespectadores. Nunca o Brasil moderno, período ditatorial à parte, enfrentou inimigo tão poderoso: aquele que, tal como um partido subversivo, usufrui da liberdade para asfixiá-la.
O Brasil real é complexo, pleno de deficiências e de linhas de força, não está representado na rede para-ideológica de informação, tomada de assalto pelo brasilianismo.
O brasilianismo é a doença infantil da ditadura da opinião. De onde se segue a divergência entre o que ocorre no país e o que pensam sobre ele aqueles que se imaginam educados. Para estes, a educação não vale coisa alguma.
sexta-feira, 14 de setembro de 2007
A doença do brasilianismo
Esta eu surrupiei do blog do Hiroshi Bogéa. Trata-se de um texto de Wanderley Guilherme dos Santos, filósofo e doutor em Ciência Política (ênfase em teoria da democracia), membro da Academia Brasileira de Ciências.
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6 comentários:
Yúdice, os seis primeiros parágrafos foram perfeitos! Valeu !
Deixei o mesmo comentário no Hiroshi!
Beijos.
Excelente texto primo!!!
Qualquer comentário que eu venha a fazer estragaria o brilhantismo!!!
Confesso que aidna não tenho uma bagagem suficiente para discutir e até por isso não me atrevo!!!
Grande Abraço!!!
Pobre Brasil, pobres brasileiros, pobres inúmeras gerações que sofrerão devido a interesses menores de minorias tão primitivas e medíocres que alienaram-se até mesmo das acepções mais modernas daquilo que venha a ser Poder!
Pobre Brasil que destroi a tudo e a todos, dos pobres índios, as matas e até mesmo os sonhos.
Um lugar árido, no qual todos vivem com medo, com a certeza de estarem sendo constantemente sendo roubados e não podem se elevar.
O brasil é um país tão perverso, que o presidente ex retirante, diz a jornalistas brasileiros presentes na sua viagem alienante à escandinávia, que não gostaria de falar do brasil naquele momento. Como deve ser isso interpretado? O presidente não queria falar do brasil "verdadeiro" diante dos noruegueses? Não queria falar do país que governa e no qual, com a ajuda do seu partido, o senado federal deu uma bofetada na sociedade e nos valores republicanos apregoados e que em seção secreta, proibida à toda a sociedade, não apenas decidiu pelo indefensável, como se ainda não bastasse, desligou os seus telefones e a sua acessibilidade eletrônica, para que assim os pobres eleitores, pagadores de impostos e mantenedores daquela instituição, não pudessem ao menos demonstrar o seu descontentamento. Pobre, miserável brasil dos nossos filhos.
É verdade, Cris. Fui arrebatado pela análise feita, daí que precisei publicá-la também.
Mas o brilhantismo é do Wanderley, Jean.
Roberto, saudações. É um prazer ter um comentarista como você no blog. Só lamento que seu sentimento seja de desesperança, como também é o meu e, creio, o de um número imenso de brasileiros. Que fizeram dos nossos sonhos?
Yúdice, o prof. Wanderley Guilherme afirmou de modo pomposo e sofisticado o que eu sempre disse de maneira mais simples (simplória, até): Lula foi reeleito pela barriga do povo, e não por sua ignorância, como quis acreditar a classe média letrada e quis fazer crer a grande imprensa e Geraldo Alckmin.
Não votei em nenhum dos dois: no primeiro turno, sufraguei a candidatura de Cristóvam Buarque e no segundo, muito incomodado, anulei meu voto. Mas não posso negar importância aos programas sociais do governo - sendo o bolsa-família o mais vistoso deles - que pretendem dar solução à miséria, desigualdade e fome causadas pelos governos anteriores, inclusive o do "príncipe dos sociólogos", e pelo desajustado e selvagem capitalismo aqui praticado, por brasileiros ou pelos de fora.
Minha única ressalva ao texto parte de uma dúvida. Não sei se Wanderley Guilherme dos Santos escreveu estas linhas a propósito da absolvição de Renan Calheiros e do trabalho pró-cassação feito pela grande imprensa. Se foi por proveito deste momento – no que eu não quero acreditar – é, então, mais uma para a lista dos intelectuais desacreditados, encabeçada pela Marilena Chauí.
Francisco, desconheço o contexto em que a crítica foi escrita. Só achei importante ajudar a divulgá-la. Mas admito que a intelectualidade brasileira há tempos anda assim... como direi? Acabrunhada.
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