A Lei de Imprensa é a de n. 5.250 e data de 1967, ou seja, é produto dos tempos da ditadura militar. Não apenas pela data, mas certamente por conta de seu conteúdo. Não à toa, muitos esforços se têm empenhado desde a Constituição de 1988, para vê-la abolida de nosso ordenamento jurídico.
Não pretendo aqui esmiuçar um diploma de 77 artigos e 41 anos de história, mais de 19 sob uma nova ordem constitucional. Quero apenas que as pessoas possam entender porque a lei sob comento é tão odiada assim. Basicamente, porque contém normas antidemocráticas, incondizentes com liberdades fundamentais inscritas na Carta Magna ora vigente. Tais normas foram produzidas numa época em que se pretendia assegurar a existência de um suporte legal para punir, rápida e severamente, quem quer que falasse mal do governo nefasto da época.
No âmbito penal, que é o que me toca de perto, a Lei de Imprensa trouxe problemas graves — o maior deles, provavelmente, o da responsabilidade sucessiva. O art. 37 autoriza, expressamente, que a responsabilidade penal recaia sobre "o autor do escrito ou transmissão incriminada" e, caso este se encontre fora do país ou não tenha "idoneidade para responder pelo crime", sobre o diretor ou redator-chefe, sobre o gerente ou proprietário de oficinas ou de emissoras de radiodifusão e, por fim, sobre os distribuidores ou vendedores da publicação.
Agora imagine: um jornalista escreve uma reportagem consiuderada ofensiva e sai do país. O dono do jornal é que vai pagar o pato. Se não ele, o coitado que tenha feito a impressão e que, talvez, seja apenas um terceiro sem qualquer poder decisório sobre o conteúdo da publicação. E assim por diante.
Essa monstruosidade viola o princípio nullum crimen nulla poena sine culpa: uma pessoa somente pode sofrer sanção penal se ela mesma tiver realizado o delito. Imagine você sendo punido por um crime cometido por seus pais, ou por um irmão ou por um filho, só porque moram na mesma casa. É algo tão absurdo que não se compreende como tenha sobrevivido até ontem.
Por isso, sem dúvida, hoje o Brasil amanheceu em dívida com o Ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, que ontem concedeu liminar na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 130, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista, suspendendo a eficácia de diversos dispositivos da Lei de Imprensa. Conseqüente, todo e qualquer processo instaurado com base neles está automaticamente suspenso, também.
As normas suspensas são, segundo o sítio do STF: (a) a parte inicial do § 2º do artigo 1º (a expressão “...a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei, nem ...”; (b) o § 2º; (c) a íntegra dos artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 20, 21, 23, 51, 52; (d) a parte final do artigo 56 (o fraseado “...e sob pena de decadência deverá ser proposta dentro de três meses da data da publicação ou transmissão que lhe der causa...”); (e) os §§ 3º e 6º do artigo 57; (f) os §§ 1º e 2º do artigo 60; (g) a íntegra dos artigos 61, 62, 63, 64 e 65.
Mais uma vez, o Poder Judiciário passa à frente do Poder Legislativo e corrige as distorções da legislação brasileira, o que tem sido muito freqüente nos últimos anos. Como o Congresso Nacional não legisla, não cumpre suas funções constitucionais, não faz nada além de servir ao governo do momento e tentar manter seus pútridos esquemas de bandalheira, a legislação fica como está, por pior que seja, até que alguém provoque o Judiciário e este possa decidir, consertando uma boa parte do que há para ser consertado. Felizmente, ainda existe essa última trincheira.
A notícia oficial do STF pode ser lida aqui e, nela, há um link para a íntegra da decisão do ministro, que vale a pena ler. Pessoalmente, acredito que, quando for julgada a ADPF no mérito, a desconformidade da lei à Constituição será ratificada.
Infelizmente, não temos a menor ideia de quando isso ocorrerá, mas uma nova legislação sobre a imprensa vem aí. Quem sabe o tal Congresso não se interessa pelo assunto e apressa um pouco a tramitação das matérias que hoje estão engavetadas.
4 comentários:
Interessante, Yúdice. Passei no Flanar tb. Vem por ai muito debate sobre a questão. Aliás, tanta "coisa legal" em nossa país precisa ser reformulado, não é verdade? Mas, quando falamos em artigo assinado por um jornalista é uma coisa. E quando falamos de uma matéria jornalística feita por um jornalista em um jornal, ou qualquer veículo de comunicação, como prestação de serviços, é outra coisa. Imagine se o seu filho com 15 anos, você permite que ele possa utilizar o seu carro e atropela e mata uma pessoa, ou pelo menos danifique outro veículo, quem é responsável? O seu filho, somente? Ou você tb ? Imagine se preparo um post acabando com o governo e você concorda com o conteúdo e publica em seu blog(sim, porque na internet já existe o aspecto legal tb). E ai? Serei processada sozinha? Ou vc tb? Então, é assim que funciona a mídia. O que me preocupa é a preservação da fonte. Isso sim. Temos vários exemplos sobre o assunto, principalmente nos Estados Unidos. A Quinta Emenda é muito interessante. Daí o nome do blog do Juca.Olhe o caso da revista Veja. A confusão que está. Um jornalismo capenga. Uma verdadeira arma. É isso que preciso parar. O jornalismo precisa ser jornalismo.
Beijos.
Alegro-me quando verifico que o nosso tão criticado Poder Judiciario , ainda possui a capacidade de nos oferecer uma tutela jurisdicional tão justa e coadunada com o nosso tempo valorizando nossos direitos fundamentais. Melhor ainda, quando tal pronuciamento vem de um dos membros de nossa mais alta Corte de Justiça, mostra que ainda podemos ter esperança em dias melhores e mais justus.
Excelente o comentário da Cris. Lúcida e sincera ponderação.
Parabéns!
A Cris nos traz o pensamento e o sentimento de quem está diretamente no meio da situação, já que jornalistas sérios querem trabalhar, querem noticiar, mas precisam se preocupar com as conseqüências, principalmente quando há chefes com seus objetivos específicos.
Justamente porque há pessoas querendo trabalhar corretamente, a decisão do STF é histórica. Espero, sinceramente, que nos ajude a dar um passo à frente, na qualidade de nossa legislação.
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