Um de meus professores de Geografia do convênio — lá se vai o ano de 1991 —, emendou uma explicação que nos dava com informações oriundas da Biologia. Ergueram-se risos na sala, revelando a surpresa de vários alunos por ele conhecer conteúdos de outra matéria. Vendo a reação, ele, que era um piadista, ficou sério e perguntou: "Que foi? Por acaso, mudou?"
O gesto de meu professor significava "e por que eu não posso saber nada além de Geografia?" Questionamento valioso, na medida em que desnuda a limitação do alunado em geral, crente que as pessoas somente podem saber aquilo que gire em seu entorno imediato. É como se saber outras ciências fosse uma espécie de anormalidade. Eu mesmo já experimentei a sensação. Sendo professor de Direito, é como se me negassem licença para conhecer outras ciências — justamente eu, que sempre fui apaixonado por Biologia e cheguei perto de me inscrever para o vestibular de Medicina.
Nunca encarei uma reação mais intensa, como meu ex-professor, mas por várias vezes notei olhares de surpresa e até de incredulidade, por ministrar uma aula de Direito Penal enveredando por conceitos técnicos da Medicina ou, mais recentemente, da Psicologia. Estas são áreas do meu interesse pessoal, sobre as quais leio porque gosto, ainda mais porque oferecem relações práticas diretas com a minha disciplina de trabalho.
Neste semestre, tenho duas turmas de Penal III, momento em que estudaremos os crimes contra a vida. De modo algum eu me limitaria a fornecer conceitos e regras técnicas, somente. Isso seria por demais pobre. Já avisei aos alunos que enfrentaremos a ciência. Buscaremos conceitos científicos — e não apenas biológicos — para vida e morte. E depois encararemos as implicações bioéticas de nossas conclusões.
Ao se desligar os aparelhos que mantêm a vida biológica de um doente irreversível — a ortotanásia, que é diferente da eutanásia —, estamos matando? Essa conduta está abrangida pelo tipo do homicídio?
A partir de que período da gestação se pode dizer que houve destruição de uma vida e, consequentemente, um crime de abortamento? Fetos anencéfalos estão vivos? E se estiverem, é lícito abortá-los?
A vida é um direito ou uma obrigação? Uma pessoa lúcida pode optar por morrer? E quem a auxiliar, comete crime?
São questões dificílimas, que é uma delícia debater com alunos bem dispostos. É o que farei em duas salas de aula nos próximos dias. Com o detalhe de que autorizo expressamente cada pessoa a lançar mão dos argumentos que desejar. Isso porque muitos têm pavor de mencionar religião, para não serem rechaçados pelos colegas. Mas eu os encorajo a defender seus pontos de vista inclusive com argumentos religiosos. E por que não? A religião também não é parte de nossas vidas? Não motiva a conduta das pessoas e as decisões dos juízes? Cercear isso implica em negar a realidade, passando a um plano meramente teórico que chega a ser ridículo. Na minha sala de aula, isso não.
Será um semestre e tanto, se Deus quiser.
8 comentários:
Excelente iniciativa, Yúdice. Torço que deste caldeirão que vc bota no fogo, saiam boas idéias. E principalmente avanços que outros países já experimentam.
Mas a ortotanásia não exatamente preconiza que desliguemos "aparelhos" (agora designados como suporte à vida) de ninguém. Mas que concedamos o direito dos pacientes não entrarem neles (evitando assim o suporte à morte lenta e dolorosa), quando fútil se configurar a iniciativa. E por consequência, não se puna os médicos que atenderem seus pedidos quando amplamente sanandas todas as dúvidas sobre a terminalidade.
Acho que para iniciar a questão para a sociedade, é necessário definir muito bem terminalidade, com exemplos típicos de casos onde o termo se aplica, sem nenhuma sombra de dúvida. Casos duvidosos, são automaticamente excluídos deste direito (data venia).
"In dubio pro" aparelhos, digamos (permita-me este pequeno cometimento a ciência do direito).
Desligar aparelhos já é legalmente autorizado nos casos de comprovada morte encefálica, na esteira da lei dos transplantes.
Esclareço isso pois associar a ortotanásia ao desligamento de aparelhos, talvez não seja muito frutífero em derrubar os mitos envolvidos nesta duríssima questão. Muito ao contrário, pode mesmo ter o efeito contrário não só para médicos bem como para seus pacientes.
Abs
Boa noite, Yúdice. Flanar tb.
Hoje, todas as áreas estão interligadas. Eu preciso de você, você precisa de mim, nós precisamos dele...e por ai. Na área da comunicação então, nem se fala. Mais adiante vou precisar de você para esclarecimentos sobre o assunto do post. Se você puder. O FRJ me indicou você. Depois vamos conversar. Vou mandar um e-mail pra vc explicando tudo.
Beijos.
A religião só serve quando as pessoas não encontram uma justificativa lógica para suas ignorâncias (cuidado com a semântica do termo). Antes delas, são os valores que fazem a diferença. E estes estão acima do credo.
Qual a moral de um argumento religioso que considera vida um ser incapaz de vivê-la?
Se viver é ter função celular, quem quer ser uma ameba?
Se for pela tradição e cultura, dou graças a Deus. Se for pela vida, deixem que eu cuido da minha.
Olá, professor. Gostei muito do seu texto... inclusive da parte sobre a religião... A religião muitas vezes guia e fortalece as pessoas que acreditam em determinada situação e negar-lhes isso é um "pecado".
Cláudia Castilho
Barreto, obrigado por suas lúcidas ponderações. De fato, meu texto deu a entender que fiz uma relação muito direta, por isso agradeço a advertência. Se não for abuso, posso tirar umas dúvidas, qualquer hora dessas?
Querida Cris, acessei meus provedores de e-mail e não encontrei nenhuma mensagem tua. Estou, porém, à disposição.
Penso diferente acerca do valor da religião, Fred. Até porque depende de cada uma e, principalmente, do que o indivíduo faz com ela. Mas, mesmo na premissa que adotas, é necessário deixar que as pessoas se pautem em suas religiões. Afinal, de que adiantaria omitir isso em sala de aula, se a coisa será usada mais tarde, na vida real?
De acordo, Cláudia. A religião (falo aqui genericamente) é importante para o nosso crescimento. Não podemos repudiá-la, se é tão importante para as pessoas.
Em que pese não seguir nenhuma doutrina religiosa, sei reconhecer a importância da crença espiritual para a humanidade. Exatamente por isso acho que devemos fazer bem a distinção entre "Estado laico" e "Estado ateu", de forma que as igrejas não se imiscuam na estrutura orgânica do Estado sem, contudo, que este afaste por completo a presença de tais igrejas e concepções religiosas das pessoas.
Abraços, Vlad.
P.S.: Fiz-me comprender em tão poucas linhas sobre assunto tão complexo e polêmico?
Fez, sim, Vlad. Essa distinção entre "Estado laico" e "Estado ateu" que mencionas é bastante oportuna. Devemos pensar que, em geral, o problema das religiões não está em suas doutrinas, muito menos no sentimento de religiosidade, mas na condução que os seus prepostos dão, muitas vezes mal intencionados.
Abstraindo-se essas distorções, as religiões têm a contribuir com as pessoas e por que não com os Estados?
As questões religiosas são sim importantes. E todos, agnósticos e crentes, devem contribuir para a questão, procurando a decisão mais humana, que todas as religiões em seus dogmas, dizem apoiar.
A morte é um tema importante. Mas ninguém ousa discuti-la, a não ser a quando da possibilidade de sua própria morte. Todos só aceitam discutir a vida.
Mas no tocante ao que se convencionou chamar de "lei do bem morrer", a igreja católica ao menos, já se pronunciou favoravelmente a respeito da ORTOTANÁSIA (morte natural que ocorre em casos onde ela é comprovadamente esperada), alegando que é frontalmente contra a chamada "obstinação terapêutica", quando então "o homem, em suas limitações terrenas tentaria impor-se aos desígnios de Deus", para usar palavras oriundas do Vaticano.
E é frontalmente contra a EUTANÁSIA (provocar a morte de alguém ativa ou passivamente no intuito de "aliviar sofrimentos"). Bem como os médicos através de suas associações representativas já deixaram claro.
É importantíssimo, antes de se pronunciar a respeito deste delicadíssimo assunto, que cada cidadão busque mais informações sobre as definições existentes em relação ao tema. Incluído aí, o termo DISTANÁSIA, que é a morte natural dolorosa e cruel. É aquela que os pacientes terminais acabam tendo, no caso de serem conectados a aparelhos em salas frias das UTIs, longe de tudo e de todos que o amam. Aquela que poderemos experimentar, caso não se discuta, pense, amadureça e regulamente esta importante questão.
Estou à disposição para assessorá-lo neste assunto, no que estiver ao meu alcance, Yúdice.
Abs
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