sábado, 15 de março de 2008

De letra em letra

Eu adoro o Soletrando. Não me interessa, por ora, o que se diz da Rede Globo e do Luciano Huck, com (ou sem) o seu Rolex de 50 e tantos mil reais. O Soletrando é uma das melhores iniciativas da televisão aberta brasileira nos últimos anos. Afinal, a competição ajuda a revelar como anda maltratada a última flor do Lácio. Claro que não pelo que vemos nas tardes de sábado. Afinal, os adolescentes competidores estudaram e praticaram; quando chegam ao programa, já estão aptos a enfrentar a prova. Não assisti a muitas etapas do quadro, seja no ano passado, seja agora, mas desconheço qualquer candidato que tenha feito realmente feio.
O que me deixa um tanto impressionado é que o jogo educativo verse sobre algo tão elementar, como a soletração, quando poderia testar os conhecimentos de Língua Portuguesa em níveis mais sofisticados. Esse é o ponto. Os brasileiros conhecem cada vez menos o idioma pátrio e, gradativamente, sabem menos do básico dos básicos. Por isso, é mesmo necessário desnudar isso a partir, literalmente, do bê-a-bá.
O que vemos na telinha só não assume ares trágicos porque os competidores são estudantes e, presumivelmente, recrutados entre os mais aplicados das escolas (obrigatoriamente públicas, outro item merecedor de elogios) que frequentam. Se fossem pessoas selecionadas na rua ou no auditório, o resultado com certeza seria de bradar aos céus. Além do mais, são muito jovens e, por isso, ainda não chegaram a estudar conteúdos que lhes deem maior familiaridade com certos vocábulos que se lhes apresentam, alguns bem complicados, como o "septifoliolado" que custou a eliminação de Carla Danielle Lima da Silva, concorrente paraense.
Sempre gostei de ler e li muito, o que me deu uma facilidade natural para a Língua Portuguesa. Sempre soube aplicá-la corretamente, mesmo sem conhecer as regras que determinam as coisas serem como são. E sempre considerei fundamental cada pessoa saber falar seu próprio idioma de modo escorreito. Daí que me causa desespero escutar os acintes que as pessoas falam generalizadamente. E o que escrevem, então! Como me tornei professor, as provas e trabalhos que corrijo se tornam um tormento quando veem coalhadas de crimes contra a vida e a honra do Português.
Minha familiaridade com a língua me leva a considerar fáceis os vocábulos propostos aos candidatos. Admito ter dificuldade para avaliar se a prova é realmente dura ou não, para os jovens adversários. Não vejo nada de mais em "subsidiária" ou "grã-duquesa", assim como meu jargão jurídico tem "cônjuge" e "quinquênio" como termos triviais. Hoje, contudo, percebi com mais clareza a dificuldade de estudantes — sobretudo da rede pública — de saber como se soletra "pára-choques". Bastaria saber o que a palavra realmente significa. "Pára" tem acento porque vem do verbo "parar", que ainda adota o acento diferencial (abolido na reforma idiomática por enquanto engavetada) e o hífen se faz necessário porque se trata de palavra composta. Além disso, sem ele teríamos uma palavra de quatro sílabas com a primeira tônica, o que não existe. Mas todos esses raciocínios estão acessíveis à garotada? Ou ainda mais profundamente: a escola se preocupa em dar aos estudantes essa dimensão da aprendizagem, ou se limitam à velha repetição de conteúdos prontos?
Parabéns aos idealizadores e toda a equipe responsável pelo Soletrando. É mostrando as fragilidades da educação brasileira que podemos traçar diagnósticos e metas concretas. Já conseguir que saiam do papel é um obstáculo quase intransponível, porque isso é pobrema dos político.

Ponderação em 21.10.2011: A reforma ortográfica mudou as considerações feitas nesta postagem.

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