domingo, 16 de março de 2008

Não é todo dia que tenho paciência

Imerso em felicidades e sonhos, habitando um mundo colorido, infelizmente sou obrigado a por de novo os pés no chão. Não é todo dia que tenho saco para aturar certas coisas. Por isso, como nem todo mundo acessa as caixinhas de comentários, e também para dar o destaque que o caso merece, reproduzo o que rolou na caixinha da postagem "O caso da menina de Abaetetuba":

Do comentarista anônimo:
Essa “criança de 15 anos”, L., depois do furdunço todo, foi encaminhada para Brasília sobre proteção do Ministério da Justiça. Lá, alojada e mantida com dinheiro do contribuinte, fugiu pra Taquatinga, durante o carnaval. Voltou três dias depois toda lanhada, drogada e exausta de tanta farra. Foi expulsa do programa de proteção e instalada numa das cidades satélites do DF. Semana passada, o MJ acionou a PF para retirar urgente a “menor carente” e sua família do local, pois traficantes invadiram a casa para matá-la por dívidas de drogas! Esse ser humano destruiu a vida de profissionais competentes no Pará, fez a alegria da mídia, continua irrecuperável e dando trabalho. Que peninha dos pobres coitados!

Minha resposta:
Anônimo, logo se vê que você é um desses típicos brasileiros adoradores dos jornais da TV aberta e das revistas semanais. Percebe-se pela insensibilidade e pelo nível raso do comentário, que não consegue sequer situar um drama tão complexo em um nível razoável. Vamos lá:

1. Você escreveu, em destaque, "criança de 15 anos". Criança fica por sua conta, pois eu escrevi adolescente — o que uma pessoa de 15 anos é, de fato, sem qualquer juízo de valor. Provavelmente, a escolha da palavra indica a dramaticidade que pretendeu dar ao texto e o deboche em relação à pessoa criticada.

2. "mantida com dinheiro do contribuinte" é uma típica demonstração de mentalidade classe média. Preocupado com o seu dinheirinho, certo? Preocupado só com o próprio umbigo, certo? A classe média é assim: o que aperta o próprio calo é que é ruim. Mas aposto que você não se importaria se o governo — federal, estadual ou municipal, de que partido fosse — investisse o dinheiro dos mesmos contribuintes no seu time de futebol. Eu me importaria.

3. Não sou parente, amigo ou conhecido da adolescente L. Meu interesse por ela é o mesmo que tenho pela humanidade em geral. Não a considero mártir nem heroína. Não a admiro nem acho que ela seja uma pessoa melhor porque sofreu. Todavia, ela é, sim, vítima de uma família desestruturada, de um Estado criminosamente omisso, de autoridades públicas perdidas e de uma sociedade apática, egoísta e limitada, como você parece ser, com suas palavras. Quem recebe o tratamento devido, desde a primeira infância, desenvolve valores que provavelmente impediriam que ela fizesse o que fez no Distrito Federal. Aliás, impediria, talvez, que ela fizesse tudo o que fez de errado na vida, desde os atos que culminaram em sua prisão, em Abaetetuba. Achar que as pessoas fazem coisas ruins única e exclusivamente porque são más é uma limitação intelectual e moral. Tem gente que é assim. Nem todas são assim. A minoria é, eu diria, por minha conta e risco, que assumo.

4. Seria bom que esses traficantes fossem presos o quanto antes, para não por em risco mais ninguém. Aliás, o que fez o narcotráfico se tornar sucesso absoluto neste país, a partir da década de 60, foi a classe média, não os pobres. Os pobres se tornaram consumidores depois. Como você provavelmente não gosta de ler, pelo menos veja alguns bons filmes que retratam isso.

5. L. é um ser humano, sim. Você com certeza despreza essa ideia. Mas ela é: igualzinha a você. A genética, a lei e as religiões afirmam isso.

6. Pessoas competentes sofreram consequências, sim. Talvez alguma seja sua parente ou amiga. Talvez seja você mesmo. Acredito que a juíza Clarice seja uma boa magistrada. O delegado Benassuly também tem um histórico respeitável. E da ex-secretária Vera eu gosto muito, pessoalmente. Mas a juíza cometeu uma atrocidade jurídica. O delegado falou uma asneira sem tamanho (e sem pensar, creio), num momento de ânimos exaltados. E a ex-secretária não mostrou os resultados que a sociedade esperava. A sociedade, não eu. Ninguém — ninguém mesmo — caiu nessa história inocente. Nem L., nem as autoridades que você deseja santificar. Todo mundo está pagando pelos próprios erros.

Não sei se você pensou no que escreveu. Falar sem pensar é comum. Mas talvez suas palavras expressem seus reais sentimentos, o que não me surpreenderia.O que me interessa é que as autoridades, neste país, cumpram as leis deste país. E não o fazendo, sejam punidas por isso. Exemplarmente. Tão exemplarmente quanto você gostaria que as L. da vida — e somente elas — o fossem. Mas nunca com sofrimentos físicos ou mentais. Nunca com abuso, arbitrariedade, tortura e desesperança. Nunca pensando que morrer é a melhor opção. Isso eu não aceito.Você, com certeza, sim. Mas se não for com ninguém em redor do seu umbigo, claro.


PS — Tenha bom senso. Se quiser debater, tudo bem. Se quiser me achincalhar, lembre-se que o blog é meu. E faça o favor de assinar. É o mínimo que se espera de quem pretenda levar adiante uma discussão deste tipo.

Esta resposta é típica do verdadeiro Yúdice, o cara que criou este blog. Podem dar as suas opiniões. E boa noite.

PS — Leiam na caixinha de comentários a tréplica do anônimo e a minha... como se chama? Quadréplica? (rindo da própria piadinha infame)

7 comentários:

Citadino Kane disse...

Querido Yúdice,
Post impecável!
Colocaste a situação sem passionalismo, tudo no devido lugar, distanciado do calor da disputa... Agora é possível falar sem machucar ninguém, apenas mostrar que por mais absurdo que possa parecer, aquela garota é uma vítima, sem pieguismo, não é heroina, mas vítima... Os erros que comete seguidamente, reforça essa percepção, continua sendo vítima de um sistema que joga tudo e todos num liquidificador e faz virar "suco"...
Nem gosto de me debruçar sobre tema tão áspero em poucas linhas.
Benassuly e Vera não são algozes de ninguém, considero que pelas circunstâncias foram vítimas também e responderam por uma situação que já vinha se arrastando ano após ano...
Abraços irmão,
Pedro

Carlos Barretto  disse...

Viu? Não é o que eu digo, Júlia?
Seu pai é d +!

Anônimo disse...

"Quando alguém mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando alguém trapaceia, está roubando o direito à justiça". Khaled Hosseini em O caçador de pipas, tradução de Maria Helena Rouanet, Editora Nova Fronteira.

A teoria da vitimização

Infelizmente muitos formadores de opinião (você é um deles) adotam a teoria da vitimização, que sempre se mostra ineficaz contra a violência e o que é pior: produz mais vítimas e perdas materiais no médio e longo prazo.

Veja o caso contrário de Nova Iorque com a teoria da dissuasão posta em prática pelo ex-prefeito Rudolph W. Giuliani, endureceu e reduziu os crimes até próximo de zero. Os gastos públicos caíram, os danos à propriedade caíram, melhorou a qualidade de vida e a liberdade de ir e vir, e o mais importante: o número de vítimas caiu. Bastaria apenas uma única vítima fatal poupada que já teria valido a pena.

É fácil desresponsabilizarmos-nos das nossas decisões imputando-as ao acaso ou a qualquer bode expiatório, como às elites ou à "Zelite", à globalização ou aos chamados "neoliberais".

Me pergunto se uma dessas vítimas insanas do sistema pussesse uma arma na cabeça de sua esposa grávida ou de sua filha e tudo exigisse? O turbilhão de suas idéias libertárias e emoções primitivas seriam contidas por esse discursinho pequeno burguês? Passaria Vossa Eminência a ter os mesmos ideais humanitários para com criminosos e correlatos? Ah, negão, duvido muito!
Não quis te achincalhar, fui emotivo em minhas palavras. Mas te digo, bandido é bandido e não tem jeito!

Abraços.

Yúdice Andrade disse...

Grato pelas palavras, Pedro. Imagino que a situação tenha sido ainda mais incômoda para ti, que decerto tens ligações mais próximas com as duas pessoas citadas.

Gentileza tua, Bar.

Yúdice Andrade disse...

Anônimo, você é um homem elegante. Primeiro por não reagir com pedras, e sim com argumentos (provando que os tinha). Segundo por reconhecer ter falado com emotividade (o que, em si mesmo, não é de todo ruim).
Tendo-se elevado o nível da discussão, vamos a ela.
Seu comentário poderia ser usado em uma de minhas aulas, pelo seu caráter didático. Uma das fundamentações filosófico-políticas do Direito Penal são os chamados movimentos de lei e ordem, que começaram a se desenvolver teoricamente na década de 1960, nos Estados Unidos - país conhecido pela dureza de suas leis e pela gravidade dos crimes que lá ocorrem, a despeito daquelas. É o país com o maior número de assassinos seriais e de chacinas em escolas e universidades, a par de ser um dos países mais poderosos financeiramente falando e de ter uma histórica condição de preominência mundial. Creio que somente por isso já posso afirmar que fatores sociais os mais variados influenciam a criminalidade, sobretudo a violenta.
Os movimentos de lei e ordem se apropriam da mídia para fazer a cabeça das pessoas, o cidadão comum, a quem chamei de inocente útil. E ele passa a usar, como se fosse seu, como se tivesse refletido sobre isso, um discurso altamente padronizado, que você reproduziu didaticamente. Veja só:
1. Citou como modelo Rudolph Giuliani, expoente dessa corrente, famoso pelos resultados obtidos em Nova Iorque. Seria uma espécie de prova viva de que essa teoria está correta.
2. Referência a estatísticas dos supostos benefícios da política de "tolerância zero".
3. Uso de clichês: "endureceu e reduziu os crimes até próximo de zero" (será mesmo?); "melhorou a qualidade de vida" (de quem???????); "Bastaria apenas uma única vítima fatal poupada que já teria valido a pena". E, claro, o uso da batidíssima técnica do se-fosse-com-você-eu-queria-ver.
4. Meu caro, já relatei aqui no blog sobre o assalto que sofri em uma lanchonete da cidade, em companhia de minha esposa, irmão e um amigo. Dezenas de pessoas como reféns por 15 minutos, mas uma senhora que foi levada pelos assaltantes. Tiroteio entre criminosos e bandidos e a sensação real de que poderíamos morrer naquele instante. Meu irmão, hipertenso, tendo um pico de pressão e indo para um hospital para prevenir um AVC. Passei por isso e morri de ódio. Queria matar cada um daqueles assassinos. Mas o tempo passou e, graças a Deus, recuperei a lucidez. Aqueles assaltantes não são coitadinhos nem simplesmente vítimas. São delinqüentes que devem ser punidos. É isso que espero e nada além disso. Inclusive contei a meus alunos como me sentia e fico muito feliz de que a experiência em questão não tenha roubado o meu bom senso.
5. Gosto de citar o caso da dramaturga Glória Peres, que teve a filha brutalmente assassinada e mobilizou a opinião pública, com a ajuda da Rede Globo, para endurecer a legislação brasileira. E conseguiu. Mas deu uma entrevista dizendo que sempre fora e continuava sendo contra a pena de morte. Viu? Ela teve uma filha assassinada e não perdeu a lucidez.
6. Minha maior preocupação, em sala de aula e aqui no blog, já que sou um formador de opinião, é fazer as pessoas entenderem que o crime tem diversas causas diferentes e todas precisam ser conhecidas e enfrentadas. Dizer que são vítimas, apenas, é ingenuidade. Dizer que são maus, apenas, é asneira. Tem gente que delinqüe por pura maldade, outros porque beberam, outros porque são vitimizados pelo Estado, outros porque sofreram abusos, outros por curiosidade, outros por imaturidade, outros por sociopatia, etc. O Estado precisa de meios para responder a essas diversas situações.
7. A teoria da vitimização, que menciono como uma das explicações possíveis e jamais como a síntese da verdade, é também aplicável, sim. Negar isso seria estar fora do mundo real.
8. Achei engraçado o seu comentário: "É fácil desresponsabilizarmos-nos das nossas decisões imputando-as ao acaso ou a qualquer bode expiatório". Engraçado, é isso que dizemos que os adeptos da lei e ordem fazem, colocando tudo nas costas do delinqüente. Aliás, ele costuma ser o bode expiatório do Estado omisso.
9. Quanto à "Zelite" ou aos "neoliberais", pergunte ao Mainardi. Só falei da classe média porque convivo com ela.
10. Sugestão: antes de bater palmas ao Giuliani, procure saber se a criminalidade realmente foi debelada ou se apenas se deslocou para outro local, outra cidade. Se foi assim, ele se deu bem e Nova Iorque também. Mas alguém pagou a fatura, o que prova que o problema de fato não foi resolvido. É isso que critico. Ficar feliz porque o caos saiu da minha porta, mesmo que prossiga ferindo outras pessoas, é a tal mentalidade de classe média a que me referi.
11. Bandido é bandido, sim. Gay é gay, advogado é advogado e flamenguista é flamenguista. Todos agem de acordo com seus próprios interesses. Mas, eventualmente, nem que seja eventualmente, um flamenguista pode achar que seu time está uma droga; um advogado pode querer encerrar o processo, ao invés de eternizá-lo; um gay pode decidir ter um relacionamento hétero e um criminoso pode não querer passar a vida no crime. Você diz que isso é impossível. Eu duvido. Sou contra generalizações. Conheci gente que cumpriu pena e reconstruiu sua vida depois. É nesses que penso.
12. Se são minoria, mostre-me as estatísticas. Que me conste, elas não existem.
Abraços, também.

PS - A citação do Hosseini é uma alusão a que eu estou negando à verdade a alguém? Se sim, pergunte a meus alunos e eles confirmarão que eu sempre apresento as duas linhas de pensamento e os deixo absolutamente à vontade para seguir qualquer uma delas. E deixo muito claro que eu tenho uma linha teórica específica, mas não dissimulo isso. Declaro-o abertamente. Só faço uma exigência: qualquer que seja a decisão do aluno, ela deve ser apresentada com argumentos relevantes e não com bazófias de imprensa, citações de autores não lidos, generalizações sem suporte factual e tudo mais que sugira ausência de reflexão e condição de massa de manobra.

Anônimo disse...

Diferentemente de você, penso que é pura bobagem isso que "anônimo" fala. Bobagem que eu ouço todo dia, de pessoas que simplesmente não têm sensibilidade. Ou então gostam de discutir besteira, por terem uma cultura formada pela "Veja" e a "Globo" e se acharem "esclarecidos", enquanto nós, que temos nossas próprias idéias, somos idiotas. Isso sempre foi típico da humanidade, que por isso caminha a passo de lesma. Na verdade, o tema nem admite discussão: afinal, qual a causa que esse anônimo está defendendo, que se fuzilem, estuprem esses brasileiros, irmãos historicamente excluídos por latifundiários e políticos corruptos? Se é assim, vamos desproclamar a abolição da escravatura para o maior conforto do anônimo, seus familiares, e as "pessoas de bem".

Carlos Barretto  disse...

Não perderei meu tempo com pessoas que parecem já ter opinião formada a favor da mera e simples barbárie e/ou da circunferência de seus umbigos. Neste caminho, só fazemos é estar bem mais próximos deles.
Dos bandidos, é claro.
Apenas mantenho-me em favor da verdadeira lucidez, que é um conunto de idéias devidamente pensadas e embasadas em textos e estatísticas factuais, longe de superficialidades e ou ímpetos bestiais.
Esta é a maneira correta de "formar opinião" (????). SE de fato ISSO acontece, que seja com fatos.
Nunca com "emoções" congeladas e estagnadas, que recusam-se a sofrer e receber os bons ventos revisionistas, alheias a necessária atitude flexível da mente humana diante dos fatos.

Abs