João Paulo II, o papa considerado pop porque viajava por todo o mundo, estreitando relações inclusive com segmentos tradicionalmente avessos à Igreja Católica, não perdia uma oportunidade de condenar o uso de anticoncepcionais. Disse isso de viva voz, para o povo brasileiro, quando aqui esteve. Com a autoridade de quem vive cercado de ouro e pedras preciosas, mandou que uma rica nação de povo paupérrimo não faça planejamento familiar, talvez para aceitar os filhos que Deus mandasse. Não mencionou, todavia, se sua Igreja pretendia financiar, com recursos próprios, algum programa humanitário de alimentação, educação e saúde para os filhos nascidos das famílias católicas sem direito a contraceptivos — que não são abortivos.
Agora, é a Organização das Nações Unidas que revela o seu espírito globalizador e, louvando-se em tratados internacionais para restrição de acesso a entorpecentes, formalizou pedido aos governos de Bolívia e Peru, no sentido de proibir imediatamente a mastigação da folha de coca, além de exigir esforços maiores para erradicar essa prática.
O motivo, claro, é que a coca é matéria-prima da cocaína. Sabemos disso. Porém, cocaína não é folha, nem casca, raiz, fruto ou semente. Cocaína não dá em árvore. Ela é resultante de um processo de fabricação a cargo do mau engenho humano. Acaso estaria a ONU interessada em promover uma gradual erradição da própria planta? Isso vale para as opiáceas?
Lembro que, embora a folha de coca seja matéria-prima, não existe cocaína sem outros componentes. Por exemplo, acetona. As manicures que se cuidem.
A medida já provocou reações indignadas. Desde que o mundo é mundo, as populações nativas mascam a folha de coca. É uma característica cultural. Arrisco dizer que mascar a coca, para eles, equivale a um paraense tomar açaí. Não é apenas um fruto, um alimento: é um aspecto da identidade do paraense. E mesmo que a planta contenha substâncias potencialmente nocivas à saúde, não creio que vá além dos riscos inerentes de uma sociedade de risco. Veja-se o caso de nossas beberagens, garrafadas ou mesmo dos pretensamente inócuos chazinhos. Sempre importam em riscos potenciais. Outro dia, meu irmão levou um susto ao chegar em casa e encontrar nossa mãe saboreando um delicioso suco de carambola. Ela tem apenas 14% da capacidade de um dos rins (o outro, espero, seja normal) e carambola é contra-indicada em casos de insuficiência renal. Nada além de um suco mas, para ela, um perigo.
O que a bem intencionada ONU pretende é que povos mudem hábitos arraigados da noite para o dia, sem cogitar da significação que possam ter. Sem cogitar, também, que mascar a folha de coca alivia a fome dos trabalhadores, submetidos a degradantes condições de vida. É um alívio para sofrimentos antigos, nunca enfrentados à altura sequer pelos governos autóctones, que dirá pelos países ricos com assento na ONU. A organização também se esqueceu de dizer se pretende financiar, com recursos próprios, programas humanitários destinados a oferecer, aos indoamericanos, algo melhor e mais definitivo do que a coca.
Deveria haver uma proibição formal a que pessoas fizessem propostas de impacto sem, antes, meditar com profundidade e estudar tecnicamente sobre suas repercussões sobre o corpo, a mente e o espírito de seres humanos. Mas isso a ONU também se esqueceu de fazer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário