Hoje em dia, não faltam defensores de ritmos musicais popularescos e mesmo grotescos, que seriam uma expressão genuína da cultura de um certo povo, em dado tempo e local. O brega, o axé, o funk e tantos outros desatinos sonoros — pobres não porque eu queria assim os classificar, mas porque demandam pouco conhecimento e pouca técnica para sua composição e execução — seriam exemplos dessas produções antes marginalizadas e que hoje estão no gosto de uma classe média cada vez mais permeável à baixaria. Eles seriam, assim, na visão romântica de seus defensores, instrumentos de um inusitado nivelamento social. Nas festas de aparelhagem de Belém, nas micaretas nordestinas e nos bailes funk cariocas, ricos e pobres se misturariam numa suposta confraternização, que reduziria os efeitos das diferenças de classe.
O que ninguém imagina é que esse fenômeno já aconteceu, duzentos anos atrás, com ritmos hoje menosprezados pelo senso comum, não por serem ruins, mas por serem bons demais: os eruditos. Talvez você acha que eu me refiro às quadrilhas, polcas e mazurcas, que fizeram a alegria nos bailes europeus da Idade Moderna. Sem dúvida, elas também exerceram esse papel, em alguma medida. Mas o ritmo que realmente derrubou as diferenças de gosto entre as classes sociais foi a valsa. Sim, a valsa, que no imaginário do nosso tempo está diretamente associada a eventos de gala — os casamentos sofisticados, os ridículos mas ainda famosos bailes de debutantes e as festas de formatura (se bem que estas não podem ser consideradas exatamente como glamourosas, e sim como frenéticas).
Amante da música erudita nas suas mais variadas formas (antiga, sacra, medieval, marcial, clássica, étnica, etc.), eu mesmo fiquei surpreso com esta descoberta, que fiz lendo o opúsculo que acompanha o CD Grandes Compositores da Música Clássica, editada pela Abril Coleções e associada à revista Bravo!. Refiro-me, como não poderia deixar de ser, ao volume dedicado à Família Strauss. Veja o que diz a publicação:
Mas, afinal, o que é a valsa? Ouça uma delas com atenção. O início lento parece um tanto convencional. Mas a aceleração do andamento aos poucos deságua em um delírio de música vertiginosa. Pela primeira vez na história, uma música exigia uma dança em que os casais rodopiam enlaçados, embalados por melodias memoráveis. Reunindo tais qualidades, a valsa se tornou um êxito sem precedentes na vida musical europeia das primeiras décadas do século 19.
Quando surgiu como um tsunami na Viena dos anos 1820, o gênero foi considerado indecente, imoral e até prejudicial à saúde. A polícia coibiu a "indecência e a abominável maneira de fazer as mulheres girarem" e de "fazer voarem os vestidos revelando o que deveria permanecer oculto". A reação da Justiça austríaca beirou a histeria. Os guardiões da moral baixaram leis proibindo a valsa em nome da higiene pública. Eles se apoiavam numa "pesquisa" indicando que, das cerca de 10 mil pessoas mortas por ano em Viena, "uma em cada quatro morre em geral por causa de uma doença respiratória, com frequência agravada pela prática excessiva da valsa". Um juiz garantia que "valsar durante dez horas sem parar, até as sete da manhã, provoca uma vertigem constante com enfraquecimento da vista e do ouvido, sem falar de consequências mais graves".
Reações inúteis, pois, nos anos 1830, a valsa já invadira os salões de baile públicos e privados, parques e praças, cafés e hotéis de luxo de todos os tamanhos e quilates. E arrebentara com as divisões de classes. A nobreza, a burguesia ascendente, as classes baixas, todo mundo se divertia em baições regados a valsa. Fenômeno igual o mundo só veria um século depois, com o surgimento do rock e de Elvis Presley.
(...) A valsa foi, de fato, a primeira música verdadeiramente popular. E o responsável pela façanha não foi um homem apenas, mas uma família. A família Strauss.
O que ninguém imagina é que esse fenômeno já aconteceu, duzentos anos atrás, com ritmos hoje menosprezados pelo senso comum, não por serem ruins, mas por serem bons demais: os eruditos. Talvez você acha que eu me refiro às quadrilhas, polcas e mazurcas, que fizeram a alegria nos bailes europeus da Idade Moderna. Sem dúvida, elas também exerceram esse papel, em alguma medida. Mas o ritmo que realmente derrubou as diferenças de gosto entre as classes sociais foi a valsa. Sim, a valsa, que no imaginário do nosso tempo está diretamente associada a eventos de gala — os casamentos sofisticados, os ridículos mas ainda famosos bailes de debutantes e as festas de formatura (se bem que estas não podem ser consideradas exatamente como glamourosas, e sim como frenéticas).
Amante da música erudita nas suas mais variadas formas (antiga, sacra, medieval, marcial, clássica, étnica, etc.), eu mesmo fiquei surpreso com esta descoberta, que fiz lendo o opúsculo que acompanha o CD Grandes Compositores da Música Clássica, editada pela Abril Coleções e associada à revista Bravo!. Refiro-me, como não poderia deixar de ser, ao volume dedicado à Família Strauss. Veja o que diz a publicação:
Mas, afinal, o que é a valsa? Ouça uma delas com atenção. O início lento parece um tanto convencional. Mas a aceleração do andamento aos poucos deságua em um delírio de música vertiginosa. Pela primeira vez na história, uma música exigia uma dança em que os casais rodopiam enlaçados, embalados por melodias memoráveis. Reunindo tais qualidades, a valsa se tornou um êxito sem precedentes na vida musical europeia das primeiras décadas do século 19.
Quando surgiu como um tsunami na Viena dos anos 1820, o gênero foi considerado indecente, imoral e até prejudicial à saúde. A polícia coibiu a "indecência e a abominável maneira de fazer as mulheres girarem" e de "fazer voarem os vestidos revelando o que deveria permanecer oculto". A reação da Justiça austríaca beirou a histeria. Os guardiões da moral baixaram leis proibindo a valsa em nome da higiene pública. Eles se apoiavam numa "pesquisa" indicando que, das cerca de 10 mil pessoas mortas por ano em Viena, "uma em cada quatro morre em geral por causa de uma doença respiratória, com frequência agravada pela prática excessiva da valsa". Um juiz garantia que "valsar durante dez horas sem parar, até as sete da manhã, provoca uma vertigem constante com enfraquecimento da vista e do ouvido, sem falar de consequências mais graves".
Reações inúteis, pois, nos anos 1830, a valsa já invadira os salões de baile públicos e privados, parques e praças, cafés e hotéis de luxo de todos os tamanhos e quilates. E arrebentara com as divisões de classes. A nobreza, a burguesia ascendente, as classes baixas, todo mundo se divertia em baições regados a valsa. Fenômeno igual o mundo só veria um século depois, com o surgimento do rock e de Elvis Presley.
(...) A valsa foi, de fato, a primeira música verdadeiramente popular. E o responsável pela façanha não foi um homem apenas, mas uma família. A família Strauss.
Johann Strauss I (1804-1849), aclamado como "pai da valsa"
Quanto mais conhecemos a música erudita, mais motivos temos para amá-la e admirá-la.
4 comentários:
Yúdice, falando em música, recomendo que assistas o documentário Brega S/A, que invade os bastidores do tencobrega em Belém, com comentários de Lúcio Flávio Pinto e Paulo Cal.
O vídeo está todo disponível no youtube, com 5 partes, ou pode ser baixando no site www.bregasa.com(aproximadamente 700MB).
Vale a pena, para criticar ou apoiar, conhecer.
Abraços!
Arthur, também acho que precisamos conhecer para criticar, embora com certas ressalvas. Por exemplo: considero esta assertiva perfeitamente válida para o documentário mencionado. Mas não me peça para escutar as letras da banda A ou B, pois não vai rolar...
Abraço.
Yúdice, não existe comparação entre Valsa e os estilos populares de hoje em dia. Meu ponto de vista se baseia neste seu comentário:
[…] O brega, o axé, o funk e tantos outros desatinos sonoros - pobres não porque eu queria assim os classificar, mas porque demandam pouco conhecimento e pouca técnica para sua composição e execução - seriam exemplos dessas produções antes marginalizadas e que hoje estão no gosto de uma classe média cada vez mais permeável à baixaria. […]
E com certeza os ritmos de hoje existem porque são…
[…] … uma expressão genuína da cultura de um certo povo, em dado tempo e local. […]
A cultura de hoje é estremamente pobre. E os resultados são esses.
Alexandre
Corrigindo: extremamente.
Alexandre
Postar um comentário